Norah Jones - Begin Again ****

Norah Jones tem um problema sério – começou por cima. O êxito estrondoso de Come Fly With Me (2002) colocou-lhe uma fasquia difícil de ultrapassar. E a verdade é que tem lidado muito bem com isso, sendo a ironia do título deste disco (Começar de Novo) um bom o exemplo dessa descontração. Porque, assumidamente, este é um disco em que não tenta nada. Tentou manter a chama nos discos que se seguiram à estreia e depois tentou novos e interessantes caminhos quando trocou o jazz pela electrónica. Isto de agora é quase uma brincadeira, de que se sente à vontade para o fazer. Uma colecção de singles em colaboração, especialmente com Jeff Tweedy (Wilco) e Thomas Bartlett (St. Vincent), lançados ao longo de um ano e agora reunidos. O registo é o jazzístico (“Just a Little Bit”), com dois temas (“It Was You” e “Wintertime”) a ombrearem com os melhores que já gravou. Sim, é Norah regular, sem especial golpe de asa. Mas Norah regular é muito bom.

Stephen Malkmus - Groove Denied ***

Chega-se ao último tema, mais ou menos meia hora depois do primeiro, e é inevitável perguntar o que aconteceu entretanto. “Grown Nothing” é talvez a melhor canção desta aventura a solo do ex-Pavement, na sua textura electrónica de bossa nova, com marcados solos de guitarra e uma linha rítmica belíssima. Mas é estranhamente parecida com o que Malkmus tem andado a fazer com os Jicks, e que não é muito diferente do que fazia com os Pavement: pop clássico, um pós-indie, que não desdenha a busca de eternas novidades. Essa “Grown Nothing” acaba, assim, por ficar muito distante e até algo contraditória com o tom geral do disco, totalmente dominado pela electrónica, de que o primeiro tema (um instrumental) e “Viktor Borgia” são os exemplos mais exuberantes. Fica, por isso, a dúvida sobre se este disco representa uma nova linha de exploração, ou apenas um episódio, uma brincadeira com sintetizadores.

Calexico + Iron & Wine - Years to Burn ****

A soma das partes não é mais nem é menos. É outra coisa. Há a voz e especialmente a marca composicional de Sam Beam (Iron & Wine), mas há também a sonoridade de fronteira dos Calexico. Não se trata, porém, de um disco em que, à vez, cada um exibe os seus genes, antes de um exercício de integração, que, paradoxalmente, faz todo o sentido nas cronologias distintas de busca de sentido musical. Há temas mais comerciais, como “Father Mountain”, em que as coisas são mais lineares: a melodia bucólica típica dos Iron & Wine, as guitarras e secção rítmica que são marca de água dos Calexico. Mas é nas zonas mais experimentais que esse movimento exploratório se desenvolve de forma mais explícita, como em “The Bitter Suite” – oito minutos de exploração sonora, que começam por um tema acústico em espanhol, passam por um momento de improviso jazzístico e terminam em nova balada, agora abertamente indie folk. Um longo caminho desde a primeira colaboração (In the Reins, 2005).

Joan As A Police Woman - Joanthology ****

Joan Wasser é um dos nomes mais subvalorizados da atual cena musical. Talvez o heterónimo que escolheu para as capas dos discos tenha alguma culpa no cartório, pelo efeito de distanciamento e estranheza que provoca, mas obviamente não explica tudo. Além de uma compositora de primeira água, algures entre a soul e um pós-punk elegante, Joan é uma intérprete mais que competente. Este triplo CD é uma clara tentativa de repor alguma verdade na história. Trata-se de uma escolha pessoal das melhores canções de década e meia de carreira, com alguns inéditos, seja de autoria própria (“What a World”), seja de versões, das quais “Kiss”, de Prince, é a mais expressiva. Bastante sintomática é a presença massiva do primeira disco (Real Life, de 2006), um excelente manifesto de intenções. Muito interessante é também o terceiro CD, integralmente preenchido com uma sessão ao vivo na BBC, especialmente as primeiras canções, só com piano e voz.

Rustin Man - Drift Code ****
Beth Gibbons - Symphony of Sorrowful Songs ***

Em outubro de 2002, Beth Gibbons e Rustin Man lançaram Out of Season, um disco único em todos os sentidos. Passados 17 anos, quis o destino que cada um deles lance ao mesmo tempo aqueles que são os primeiros registos em nome próprio. Longínquos formalmente, próximos na intensidade da obra de 2002. Gibbons ocupou esta década e meia com actividades esparsas, entre as quais colaborações (Rodrigo Leão, homenagem a Gainsbourg...) e o derradeiro Third (2008) dos Portishead, a banda-mãe. Em 2014, gravou com a Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional polaca esta terceira sinfonia de Górecky, cuja primeira e pouco apreciada apresentação data de 1976, mas que tem vindo a ganhar estatuto de culto com os anos. Trata-se de obra extremamente sombria, que leva como título Sinfonia de Canções Pesarosas, sendo a orquestra dirigida, nesta versão, por Krzysztof Penderecki, conhecido, por exemplo, pelas bandas sonoras do Exorcista e de Shining. Beth Gibbons é tudo menos a soprano que a obra tradicionalmente exige. Mas o seu vibrato inseguro confere à obra uma particular intensidade, seja nas notas mais altas, seja quando o canto se transforma quase em declamação. Um exercício de uma beleza peculiar a exigir algum controlo emocional da parte do ouvinte. Já Rustin Man, o nome que esconde Paul Webb, baixista do Talk Talk, passou todos estes anos praticamente recatada em família, a transformar um velho palheiro em estúdio, no qual gravou, com incrível detalhe, uma infinitude de instrumentos e alguns amigos, este primeiro disco totalmente seu. E o que espanta logo a abrir é a voz, qualquer coisa entre a dureza de um Robert Wyatt e um Bowie tardio e nasal. Um disco à vez sumptuoso, pela exuberância instrumental mas igualmente variedade estilística, e quase rural, na dimensão das coisas simples a que amiúde regressa. Difícil destacar uma canção – talvez “Brings Me Joy” – porque se trata de um daqueles objetos que se vai revelando a cada audição. Tomara que todas as sequelas fossem como esta de Out of Season: um compositor de primeira água, duas vozes verdadeiramente fora de série.

The Divine Comedy - Office Politics ****

“Estás a ver aquela apresentação Powerpoint? Merecia uma nomeação para os Bafta...”. Sim, Neil Hannon continua divertido, perspicaz, irónico, mordaz e etc acerca deste desconcertante mundo que é o nosso. Como na história de “Norman and Norma”, que revivem os ardores amorosos da juventude numa batalha entre Saxões e... Normandos. Ou a autêntica delícia que são os cinco minutos que ficciona uma infância em comum a Philip Glass e Steve Reich, nos anos 60 de Nova Iorque e que – milagre – consegue manter-se pop, apesar da mimética minimalista. Ah, sim, este 12.º disco dos Divine Comedy é pop do mais pop que há. Seja na abordagem “de câmara”, tão distintiva (“After the Lord Mayor’s Show”), seja na electrónica mais funk (“The Life and Soul of the Party”) ou mesmo numa electrónica “de câmara” (“A Feather in Your Cap”). E quem não quiser deixar-se encantar por violinos e sintetizadores, há uma edição “deluxe”, só com “demos”.

Sei Miguel - O Carro de Fogo ****

Sei Miguel é um caso singular no panorama musical português. O seu território é o jazz, numa abordagem que ao ouvinte desprevenido poderá surgir como improviso absoluto. Erro que não resiste a uma audição mais atenta: esta é uma música muito burilada, experimentada, ensaiada. O saxofone de bolso situa-se claramente no centro de um palco, ao redor do qual se desenvolvem outras sonoridades, maioritariamente em movimentos próprios, mas por vezes também de forma mais estruturada, organizada. Em coro. Mais metais (trombone, saxofone), um baixo muito marcante, órgão bem mais discreto, várias espécies de percussão, finalmente uma guitarra eléctrica como que vinda de outras bandas. O disco – de vinil se trata – é composto de uma única peça (O Carro de Fogo) que Sei Miguel foi testando ao longo dos anos mais recentes. Um jogo admirável de equilíbrios permanentes de tensão e contenção.

Rickie Lee Jones - Kicks ***

Rickie Lee Jones adora cantar canções de outros, tanto que já vai no quarto disco de versões, em 40 anos de carreira. Não que lhe falte a criatividade para escrever as suas próprias canções, ainda em 2015 lançou o muito interessante The Other Side of Desire. As versões são, mais que uma homenagem ou um reconhecimento das influências, uma verdadeira forma de expressão. Rickie tem aquela forma muito peculiar de cantar e encenar música, com fortes raízes no jazz e uma voz cheia de fumo, agora claramente menos colorida. A surpresa neste disco é a origem dos temas: Elton John (“My Father Gun”), America (“Lonely People”), “Bad Company”, da banda homónima. Ou seja, um universo pop de temas não muito evidentes, cruzado com outros mais expectáveis (“Mack The Knife”, ou “Houston”, de Lee Hazlewood, em quase country). Nada do outro mundo, em suma. Balanço relativamente inofensivo.

Lambchop - This (Is What I Wanted to Tell You) *****

Kurt Wagner confirma neste disco o caminho que começou a trilhar em 2016, com “PLOTUS”. Em vez do country alternativo, em versão sofisticada de câmara, temos electrónica e uma voz permanentemente distorcida pelo Vocoder. É tudo uma questão de atmosfera – mas que diferença! -, porque lá atrás permanecem aquelas melodias gentis dos Lambchop, servidas por letras em que cohabitam estilhaços do real com o mais puro do onirismo. E a voz. A voz de crooner de Wagner continua a mesma, a distorção permanente nada pretende esconder. Antes pelo contrário, trata-se de uma busca incessante de novas texturas. Como aliás acontece com todo o pano de fundo, de onde amiúde emergem guitarras, harmónicas, metais, mas que na essência é constituído por construções sonoras eletrónicas e rítmicas. Uma arriscadíssima arquitectura sónica, que seduz cada vez mais a cada nova audição. A encerrar o disco, “Flower”, um pungente regresso aos Lambchop canónicos. Estará ali por acaso?

Martin Frawley - Undone at 31 ***

Na pop não há separações amigáveis e, por isso, são tantas e tão boas as canções sobre divórcios, corações partidos, vales de lágrimas. Há mesmo discos inteiros, tantos, que talvez já se pudesse formalizar uma corrente. Este primeiro registo a solo de Martin Frawley é mais um exemplar dessa espécie – Martin separou-se de Julia Mc Farlane, com quem, durante uma década, partilhou a cama e a banda australiana pouco mais que discreta Twerps. Como quase sempre acontece – fará parte da terapia? –, o estado de espírito comatoso reflecte-se em canções de letras mais ou menos reflexivas, mais ou menos depressivas, mas que do ponto de vista musical alinham pelos padrões solares e até dançantes da pop. “Chain Reaction” é o exemplo perfeito, mas o resto não é muito diferente. Martin é um discípulo, quase evidente de mais, de Lou Reed (“You Want Me?”) e venera os Velvet Underground a cada esquina (“What’s On Your Mind”). Início prometedor.

Edwyn Collins - Badbea *****

De que ingredientes se faz um disco perfeito? Sim, há a composição, a produção, a orquestração, a inspiração, o vozeirão. E aquela canção. Este disco tem isso tudo, em doses desacertadas, porque excessivas. E tem ainda aqueles ingredientes secretos que fazem da pop o mais delicioso bombom: um sentimento difuso de eterna adolescência, chamem-lhe nostalgia, e aquela magia de com o velho fazer novo. Edwyn Collins não merece ser o homem de uma só canção (“A Girl Like You”, 1994) e este disco – o terceiro após o derrame cerebral de 2005 que o deixou meio paralisado, sem memória e literalmente sem palavras – é uma prova contundente. Collins e um grupo de amigos passeia-se com um à-vontade extraordinário entre toadas tex-mex com metais de circo (“I Guess We Were Young”), funk eletrónico q.b. (“Glasgow to London”), punk puro (“Outside”), baladas de raiz folk (“Beauty” e “Badbea”) e mais uma série de coisas entre o R&B e soul. A tal perfeição.

John Paul White - The Hurting Kind ****

Como se Roy Orbison tivesse regressado para ensinar as novas gerações a cantar coisas de partir o coração, feridas saradas com sal, desespero alimentado de memórias e, enfim, outras histórias de amor. O terceiro disco a solo de John Paul White – após a aventura dos Civil Wars (2009-14), com Joy Williams – é um mergulho profundo no country mais comercial dos anos 1960. É um disco sem contemplações: se é necessário falsetto, faça-se falsetto (“My Dreams Have All Come True”); se Roy Orbison é a referência evidente, cante-se descaradamente à Orbison (“I Wish I Could Write You a Song”); se não há country que se preze sem um dueto, que se convide Lee Ann Womack para uma daquelas canções de deixar tudo a sangrar (“This Isn’t Gonna End Well”). O tema de abertura (“The Good Old Days”) ainda ironiza levemente os anos Trump e o tema-título é sobre a violência nas relações, mas o resto é mesmo só sobre a desgraça do amor. Sempre deu excelentes canções e estas não são excepção.

Salvador Sobral - Paris, Lisboa ****

Comecemos pela Eurovisão. O próprio Salvador Sobral não resistiu ao flirt e inclui aqui uma versão do tema de Francisca Cortesão (Minta & The Brook Trout) e Afonso Cabral, em que apostava no Festival de 2018. “Anda Estragar-me os Planos”, cantada por Joana Barra Vaz, ficou pelo caminho, e renasce neste disco numa versão exuberante, marcada pela sonoridade do rajão madeirense e ritmos africanos. Ambiente de festa, ou não fosse este um disco de estúdio, mas que por vezes (e é o caso...) mais parece uma actuação ao vivo. Eurovisão, ainda, porque se há aqui um tema que poderia ser a sequela de “Amar Pelos Dois”, essa canção é “Benjamin”, no seu recorte clássico, assente numa melodia de fácil absorção. A Eurovisão foi o acidente feliz na carreira de Salvador Sobral – permitindo-lhe, por exemplo, gravar um disco nas excelentes condições deste, ou abrindo-lhe as portas dos palcos do mundo –, mas Paris, Lisboa deixa claro que a contaminação só ocorreu num sentido. Salvador Sobral continua a interpretar música essencialmente estruturada a partir do jazz, quase sempre em registo de balada. Essa base permite-lhe depois digressões, por exemplo, pelo bolero (“Grandes Ilusiones”), a chanson (“La Souffleuse”), ou até o folclore nacional (“Mano a Mano, com Zambujo). Assina apenas cinco das letras, sendo tudo o resto, letra e música, de autoria alheia. Este é um disco feliz, luminoso, apaixonado até, como se prova na contracapa.