Patti Smith - M Train ****



"Do que perdi e não consigo encontrar, lembro-me. O que não posso ver, procuro que venha ter comigo. Trabalhando dentro de uma sucessiva corrente de impulsos, tentando aproximar-me de alguma iluminação" (do último capítulo, A hora do meio-dia), É assim o mais recente livro de Patti Smith, uma viagem no tempo pela sua paisagem íntima. Um laborioso trabalho de construção da memória. O relato do naufrágio que é a vida, com a sua incessante peregrinação de perdas, como se esse reconhecimento fosse essencial para que tudo faça sentido. 

É um livro bem diferente do anterior, Apenas Miúdos, com o qual a sua escrita ganhou notoriedade e, à semelhança deste, recebeu prémios literários e outras distinções. Nesse, havia um fio condutor, a sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, e era à volta dessa relação que tudo acontecia, especialmente a explosão cultural alternativa na Nova Iorque do dealbar dos anos setenta. Nesse sentido, esse livro, sendo de memórias - um requiem, como a autora se refere a estes seus exercícios memorialisticos -, aproxima-se mais do romance, de uma narrativa. Agora, é simplesmente a memória a trabalhar em roda viva. Daí a letra M do título. Como quando pensamos em algo, que nos traz à memória outra memória e assim sucessivamente.

O livro começa num café de Greenwich Village - e há muitos mais cafés no livro, locais privilegiados de libertação do pensamento -, que evoca à autora o sonho de ter um café próprio, e depois uma viagem à Guiana Francesa, com o marido Fred Sonic Smith, entretanto falecido e que é outro traço de união destas histórias, em busca de pedras e terra para oferecer a Jean Genet - os escritores franceses, outra da suas predilecções. Depois deste capítulo, outras duas dezenas de "árias" se lhe seguem no mesmo registo. Este não é um livro em que música surja em primeiro plano, ou sequer em segundo, como no anterior. E Patti Smith nem gosta muito de se apresentar como música, preferindo a escrita como inclinação dominante. Mas a sua escrita, inserindo-se embora numa corrente muito americana da literatura, que cruza o descritivo seco, imagético, com o onírico e o lírico, deve à sua actividade mais conhecida uma muito evidente musicalidade. Como se estes livros pudessem ser declamados, a par do que frequentemente faz nos discos e, especialmente, nos concertos. E talvez seja essa musicalidade um dos segredos do seu sucesso editorial, a par da capacidade de nos mostrar e fazer transportar para locais e histórias.

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