Lina_Raul Refree ****

Um belíssimo disco de fado. Arrumem-se desde já os preconceitos: não há aqui uma única guitarra portuguesa, mas, apesar de ainda agora estarmos no início, este será certamente um dos melhores discos de fado de 2020. Lina, anteriormente conhecida por Carolina, juntou-se ao produtor catalão Raul Refree (Silvia Pérez Cruz, Rosalía), para reinterpretarem Amália (mais um tema de Variações e outro de Marceneiro/Amélia Muge). O resultado tem tanto de estranho, como de cativante. Sem o suporte das guitarras, liberta da esquadria sonora tradicional, Lina supera-se na interpretação genuinamente fadista. A seu lado, Refree constrói um percurso inesperado de pianos e electrónica, ora emulando guitarras (“Cuidei que Tinha Morrido”), ora gerando massas sonoras quase espectrais (“Os Meus Olhos São Dois Círios”). Face a outros exercícios similares de trabalho sobre formas tradicionais, faltou a Refree trazer, também para a voz de Lina, um Cohen ou um Bowie. O fado teria gostado.

Patrick Watson - Wave ****

Aí vamos novamente, carrocel de emoções, a vida transformada em arte sonora, nós no papel de voyeurs de sentimentos, dores e ressurreições alheias. Foram duros os anos de Patrick Watson desde “Love Songs For Robots” (2015): a morte da mãe, uma separação dolorosa. Tudo isso está neste disco, há versos e linhas melódicas de melancolia um pouco por todo o lado. Mas este é também um disco de exorcizar fantasmas, de reerguer a cabeça e continuar. A generalidade das canções tem, é certo, a tal tristeza, muito devedora do timbre melancólico da voz, mas são quase sempre um crescendo sonoro e luminoso, assentes em orquestrações de uma rara leveza, tendo em conta a diversidade instrumental presente. Há momentos desconcertantes (“Wild Flower”), de intensa beleza (“Look At You”) e mesmo de uma inusitada vivacidade, com recurso ao tango e tudo (“Melody Noir”). Sim, que terapia é a música.

Angel Olsen - All Mirrors ****

Como alguém que procura infinitas planícies para gritar as suas dores. Ou penhascos para chorar íntimas traições. E juras desesperadas. É assim o mais recente registo de Algel Olsen. As canções continuam perdidas, entre a constatação de amores irremediáveis e a recusa em baixar as armas, procurar sempre, falhar, como dizem os poetas, falhar ainda mais e melhor. Mas agora essas confissões são-nos servidas em turbilhões sonoros, de guitarras, sim, essas que conhecemos desde o primeiro disco, vai para seis anos. Também os sintetizadores, que aqui chegaram em 2017 (“My Woman”). Mas especialmente através das cordas, muitas, planantes algumas, tensas e densas, na maioria dos casos. A orquestra é a grande arma de Angel nesta quinta investida, tornando expansiva a já nossa conhecida intimidade. “Lark”, logo a abrir, marca o tom, com as cordas a gerarem uma enorme barreira sonora, que rebenta num continuum a caminho de um fade out de guitarras distorcidas. Dramatismo sonoro a rodos, com intervalos de doce distensão. E cinema, como em “New Love Cassette”, uma peça assumidamente gainsbourguiana (“Melody Nelson”). E depois aquela “Chance”, a fechar, com o glamour decadente dos anos 50. As cordas rodopiam e dançam. 

Mazgani - The Gambler Song ****

Não há qualquer surpresa, ou sequer confirmação. Década e meia de estrada, seis discos no activo, Mazgani tem já créditos firmados e um nome que identifica um estilo. Mas este disco é, apesar disso, um passo em frente. Ao assumir um registo muito mais calmo, lento, que em registos anteriores, e ao afastar-se do blues seminal talvez como nunca outrora, Mazgani burila e fixa de forma mais evidente uma maneria muito peculiar de estar na música. Os temas andam – como poderia ser de outra forma? – em torna do amor, da busca, da errância. A música, com mais espaço para respirar, serve na perfeição esse desígnio contemplativo. Canções como “Into Silence” aproximam-se do pop elegante, sem as arestas do blues, para logo de seguida “The Sweetest Song” ser a excepção que nos traze o canto gritado de discos passados. Os mais puristas hesitarão perante este som mais manso, que nada parece ter, porém, de derrota ou inflexão.

Alma Nuestra - Alma Nuestra ***

O jazz e a música latina constituem territórios seguros para Salvador Sobral. A sua obra gravada e actuações ao vivo são prova cabal de que é, aliás, esse o chão que lhe serve de base ao resto, talvez juntando-lhe a “chanson”, como ficou evidente no mais recente disco a solo (“Paris, Lisboa”, 2019). Este CD resulta da paixão pela música sul-americana, partilhada com o pianista cubano Victor Zamora, a que se juntaram Nelson Cascais (contrabaixo) e André Sousa Machado (bateria). Os espectáculos ao vivo que foram rodando desembocaram num disco sem ambições extraordinárias e que se ouve com a mesma intensidade. São nove temas do cancioneiro latino, uns mais conhecidos que outros, em que o jazz fala frequentemente mais alto (o diálogo bateria/contrabaixo em “Si Me Pudieras Querer”, o piano em “La Gloria Eres Tu”) e em que Salvador faz uso extensivo dos seus limitados dotes vocais (“Alma Mia”). Não se poderia pedir mais.