O fado anda a ser reinventado, pelo menos, desde que Amália trouxe o saxofone de Don Byas para os seus discos e começou a cantar poetas contemporâneos. Nem Carminho, nem outros da atualidade, estão, portanto, a inventar nada. Mas não é por acaso, porém, que se traz Amália aqui. Carminho atravessa uma fase de infinitas possibilidades, como já se ouvira em “Maria” (2018) e se confirma na atual circunstância. Voz seguríssima, já sabíamos, a que junta cuidado e grande sensibilidade na escolha de autores, temas, referências, poetas, companhias, num balanço permanente entre a tradição e a abertura de caminhos. E por isso há aqui Marceneiro e Sophia, mas também Marcelo Camelo e Rita Vian (belíssimo dueto), e as guitarras ganham a companhia do mellotron e da pedal steel, muitas vezes a determinarem a atmosfera. “Praias Desertas”, de sua total autoria, sintetiza, em forma e conteúdo, essa tensão que atravessa o disco.
time out lx
Textos publicados na Time Out Lisboa (Oporto, sometimes). By Manuel Morgado
Pedro Branco - Amor ****
Toty Sa'Med - Moxi ****
Kátia Guerreiro - Mistura ****
Os Lacraus - Dickens ***
The Gift - Coral ***
Chico César - Vestido de Amor ****
Este disco de Chico César, o décimo em 27 anos de carreira, ficará certamente marcado pelo tema “Bolsominions”, lançado em plena pré-campanha para as eleições presidenciais de outubro, no Brasil, nas quais o cantor gostaria que fosse derrotado de vez aquilo a que chama de “neofascismo” vigente. Fortíssimo, esse é, porém, o único tema de intervenção, num disco todo ele, como de costume, apontado às pistas de dança. Chico cruza com particular alegria – bem patente em “Vestido de Amor”, o primeiro single –, ritmos que vão do reggae ao forró, passando pelas rumbas africanas ou sonoridades do mais puro rock. A doçura – “Amorinha” e “Te Amo Amor” – é a única força a rivalizar com a dança, num disco otimista de uma ponta à outra. Gravado em França, em 2021, conta com a participação de um dos ídolos do compositor, Salif Keita, em “Sobre Humano”, e do pianista congolês Ray Lema, em “Xangô, Forró e Aí”.
Angel Olsen - Big Time *****
“Chasing the Sun”, que encerra o disco, envolta em cordas, é um hino à felicidade. Na primeira pessoa. Do plural. E tudo isto são novidades em Angel Olsen. Bom, as cordas eram tudo em “All Mirrors” (2019). O resto, a companhia, a felicidade, essas, sim, são novidade. Este disco acontece na sequência de acontecimentos relevantes na vida pessoal de Angel – a assunção pública de um amor, a morte dos pais – e isso percebe-se a cada canção. Porque há canções de perda (“Right Now”), como antes, no início da carreira, mas agora também há aceitação, esperança e amor (“Big Time”). Há, portanto, uma riqueza temática que torna empolgante a audição e a descoberta, bem patente na complexidade de “Right Now”. Musicalmente, estamos perante um regresso ao country inicial, após a experiência orquestral de 2019 e o disco a solo de 2020. Correndo o risco do lugar-comum, esta é uma obra, talvez a primeira, de perfeita maturidade. Um novo capítulo.
Harry Styles - Harry’s House ****
Amélia Muge - Amélias *****
Aline Frazão - Uma música angolana ****
O regresso de Aline Frazão aos discos faz-se num registo de alegria e festa. Após o mais intimista e sereno “Dentro da Chuva”, de 2018, a música angolana – sim, música, o feminino de músico – rodeou-se de conhecidos e mais longínquos companheiros de ofício para uma celebração. Estávamos no segundo semestre de 2021 e já se antevia o fim da clausura da pandemia, havia, pois, que celebrar. Neste quinto disco, fica ainda mais evidente a triangulação que Aline realiza entra a Angola natal, Portugal de acolhimento e Brasil como ponto de união. Quase se sente a presença de Elis a certos passos de “Batuku”... O disco abre com “Luísa”, a celebração de todas as mulheres num nome. Tem convidados de origens várias e temas, também eles, de várias origens. “Valsa da Libertação”, que Ricardo Ribeiro musicou a partir de Pedro Homem de Mello, surge em simultâneo no novo disco de Dulce Pontes, embora quase irreconhecível.
José Cid - Vozes do Além ***
A piada é fácil, mas inevitável. José Cid, reconhecidamente vaidoso, faz finalmente um disco do outro mundo. Um disco sobre a reencarnação, em que – acreditem – a expressão “do além” surge em, nada mais nada menos, que três canções: “Homem do Além”, “Vozes do Além”, “Guitarras do Além”. Sim, este é um disco bastante repetitivo, seja na temática tétrica, seja na vibrante guitarrada elétrica, embora igualmente entediante, de tão previsível que é. Um disco longo, porque, na boa tradição do rock progressivo (!), estes temas devem ser sempre abordados numa perspetiva meio operática, se não ninguém leva a sério. Cid tem rodado nos últimos anos por festas e bailaricos em todo o país, mantendo uma popularidade transgeracional invejável. Essa oleada máquina de fazer música garante chão firme a uma aventura demasiado etérea. “Vou-te Amar Para Além da Morte”, ou “Zombies Como Nós”, são canções que, ao basearem-se no cânone, evitam o naufrágio. Ou a morte sem remissão.
Tozé Brito (de novo) ****
Camané - Horas Vazias *****
“Tenho Dois Corações”, o poema de Amália que há uns anos José Mário Branco musicou para Amélia Muge, é o tema mais curto deste disco. Dois minutos e meio de simbolismo, a fechar o arco entre o nome maior do fado e o músico que ajudou a definir o perfil daquele que se afirma, a cada disco, como o nome que pode igual o nome. A José Mário Branco sucede Pedro Moreira, mantendo-se uma produção, que sem perder a fidelidade ao cânone do fado, não se satisfaz com a repetição e reinventa, seja no território da guitarra/viola/baixo, seja, como é o caso, arriscando sonoridades mais amplas, com recurso ao saxofone, ao acordeão ou às cordas. Sete anos volvidos sobre o último disco de originais, com a homenagem a Marceneiro e o dueto com Laginha de permeio, Camané surge-nos em pleno, de voz seguríssima e com uma flexibilidade ainda mais surpreendente. O diálogo com o saxofone em “Às vezes há um silêncio” é disso apenas a maior evidência. O resto, parecendo natural como a respiração, é também pura inspiração.
Rodrigo Leão - A Estranha Beleza da Vida ****
Como num filme, outra vez. Os temas deste novo sucedem-se, em jeito de banda sonora de um filme que cada um de nós pode imaginar. Como noutros discos de maior fôlego de Rodrigo Leão. O ambiente onírico é agora ainda mais acentuado, devido à prevalência das encenações musicais que remetem para jogos de infância, em que pressentimos caixinhas de música, martelinhos e outras assombrações (“Sibila”, “A Valsa da Petra”. Trabalhos de pura nostalgia, sublinhados pela valsa e pelo acordeão. Como sempre, os temas cantados são entregues a grandes e pequenas estrelas internacionais, no caso, Kurt Wagner, Michelle Gurevich e Martírio. E também um cuidado especial na imagem, com a intervenção gráfica de Afonso Cruz e de Teresa Vilaverde. O disco encerra uma trilogia marcada pela pandemia (antes: O Método; durante: Avis 2020; após?: A Estranha Beleza da Vida), que o artista paradoxalmente classifica de Liberdade. O novo disco deverá marcar o regresso de Rodrigo Leão aos palcos.
Rita Redshoes - Lado Bom ****
Rita Redshoes quebra o silêncio de cinco anos com um disco integralmente em português e exclusivamente dedicado à sua recente experiência de maternidade. De certa forma, é quase como nascer outra vez. Sim, há aquela maneira de cantar, meio sussurrada, que já conhecemos há década e meia, e, sim, estão aqui alguns dos maneirismos de composição, e mesmo de orquestração, a que também estamos habituados. A grande novidade acaba por ser, por isso, o evidente prazer com que Rita descobre e trabalha as palavras em português, e mesmo como nelas tropeça, como quando tenta meter “temperamento”, onde de forma evidente o vocábulo não cabe (“Ego no Lugar”). Estão aqui canções que poderiam estar noutros discos da artista “Amor Intermitente”), mas a maioria são cantigas que poderíamos dizer de berço (“Canção Canora” ou “Canto da Sereia”, por exemplo), nas quais o tal sussurro de Rita assenta como se sempre a elas tivesse estado destinado.
José - Primeiro Disco *****
A toada folk do primeiro tema (“Fugir”), a quase lembrar as canções roubadas à terra pelos cantautores dos nossos anos 1970, é enganadora. Este é um disco que explode em todas as direções, como uma palete de cores. Que pede dança, libertação. José (Reis Fontão) lança-se agora a solo, após duas décadas à frente da banda indie francesa Stuck in the Sound e revela um ecletismo deslumbrante, assente em composições informadas e numa produção de calibre profissional. “O Berço da Terra” e “Primavera” são outras duas canções que poderíamos inscrever na linhagem do cancioneiro lusitano. Mas depois há o pop funk de “José, José, José!”, ou de “Intentions”, a house de “Beyond Doubt”, “a electrónica de “Magic Escape”, ou o leve psicadelismo encantado de “Paraíso, e é como se o disco rodasse para fora de órbita. Em direção às pistas de dança, o seu interdito habitat natural. Pareceria pretensioso, não fosse tão bem feito.
Inês de Vasconcellos - Amplexo ****
“Amplexo”, o tema, é bem o resumo deste disco, uma carta de apresentação de uma nova fadista em procura de um fado novo. O assunto, as relações LGBT, já seria suficientemente dissonante do universo do fado, mas a ruptura é mais funda e envolve também uma melodia pouco canónica e um poema com fraseado e métrica angulosos, por vezes no limite da cantabilidade. Esse registo mantém-se um pouco por todo o disco, com, por exemplo, “Fado da Supresa”, a casar a canção castiça com momentos de algum tropicalismo jazzístico. A esse poema, de Maria do Rosário Pedreira, juntam-se mais três de Vasco Graça Moura e um de Fernando Pinto do Amaral (“Olhar”), o qual, aliás, ao adoptar o Fado Licas acaba por ocupar o lugar mais tradicional do CD. Uma aposta em poetas consagrados, que ajuda a situar a aventura e remete irremediavelmente para Amália, ídolo máximo. Produção muito cuidada do experiente Ricardo Cruz.
Herbert Pagani - Megalopolis (1972) - Uma distopia esquecida
Maxime van der Love, presidente director-geral (PDG) dos Estados Unidos da Europa, no discurso da reeleição, anuncia o envio regular de lixo industrial para a Lua e o asfaltamento de todos os principais rios do Velho Continente, para dar resposta às necessidades de circulação automóvel. Enquanto o discurso vai sendo interrompido por spots publicitários da Mega Cola e da PDG (Pasta Dentífrica Governamental).
O disco Megalopolis (1972), de Herbert Pagani, é uma ópera-rock cantada em francês, que retoma parcialmente o livro Demain le Moyen Age, de Roberto Vacca. Uma distopia, prevista para o final do século XX, mas na qual tanto vamos reconhecendo muitas ideias e factos que entretanto se tornaram realidade, como outros tantos que pairam como ameaça.
Herbert Pagani (1944-1988) é um judeu de origem líbia, que fez vida entre a França e a Itália, que se interessou pelas artes plásticas e videográficas, e que deixou uma curta discografia.
A obra chegou a ter uma versão teatral, encenada pelo autor, mas haveria de cair no esquecimento. Existem várias versões, em vinil digital, mas nenhuma com a duração inicial. Estão todas esgotadas, não constam das plataformas de streaming e a única hipótese viável é uma gravação quase completa que pode ser ouvida no Youtube. Uma pena, tratando-se de um disco de tão grande atualidade.
Tempo de coisas novas
março de 2007 a março de 2021.
14 anos de tanta e tão boa música. agora, é preciso fazer coisas novas.