A música é a grande libertadora da poesia e, por isso, nada melhor que uma grande canção para retirar dos livros e gavetas um grande poema. Quem diria que, em 1971, em plena censura, se cantarolava nas ruas de Lisboa um poema de sexualidade quase explícita, a que não faltam referências homossexuais? Sim, “Cavalo À Solta”, de Ary dos Santos, que Fernando Tordo levou ao Festival da Canção e que agora reinterpreta neste disco com Tiago Bettencourt. E esta versão de “Cavalo À Solta” dá o tom ao disco – gravação caseira, intencionalmente artesanal. Mas, acima de tudo, o registo: a canção do Festival, um grito libertador, é aqui submetida a um trabalho de inversão, obrigada a serenar, num quase anti-clímax. Neste projeto, mais do que libertar poemas, através de canções que os tragam para a rua, Tiago Bettencourt prefere oferecer-lhes música que lhes faça companhia na intimidade. Exemplo disso são os dois poemas de Sofia, em que a melodia cede lugar ao acompanhamento instrumental para pouco mais que declamações. Ou o poema de Ramos Rosa, simplesmente sussurrado por Dalila Carmo. Já “Poema de Desamor” (de O’Neill), ou o de Pessoa são objecto de uma intervenção mais explicitamente musical. Não é, então, um disco para trazer a poesia à rua, antes para momentos de intimidade. Os temas foram gravados em casa e outros locais inusitados, em 2008, e estão agora a ser apresentados numa pequena digressão. O disco vem dentro de um livro com os poemas e notas do autor. Um belo objecto.