Camané já cantou muitas vezes Marceneiro. Logo no segundo disco (1998), há um fado com música da Marcha do Marceneiro. Nisso, Camané não se distingue da maioria dos fadistas, já que quase todos acabam por interpretar temas com músicas do grande fadista, seja o Fado Cravo, o Fado Laranjeira, ou qualquer um dos fados com que Marceneiro ajudou a moldar o fado que hoje conhecemos. Mas Camané obrigou-se a esperar quase duas décadas, a amadurecer duas décadas, para verdadeiramente cantar Marceneiro. Ou seja, para cantar exactamente os fados que Marceneiro cantou. Com aquelas músicas, mas também com aquelas letras e, acima de tudo, com aquela alma.
Não se trata aqui de imitar ou emular Marceneiro, isso seria talvez mais fácil. O que Camané faz é recriar Marceneiro, propondo a sua própria interpretação, a qual, por ser tão íntima da original, acaba por se transformar na melhor das homenagens. Essa é a primeira vitória deste disco, sendo a segunda a coragem de cantar em 2017 estes versos arrancados à boémia, às casas de fados e a uma mundividência da primeira metade do século XX, em que – imagine-se – ainda havia mundo rural (“Quadras Soltas”), ciganos “alquiladores” que “roubavam” camareiras e até mesmo jovens pintores que pintavam na rua retratos das suas prostitutas mães (“Bêbado Pintor”). São quadros quase arqueológicos que convivem com os temas mais eternos do amor e do engano (“Olhos Fatais”) ou da tal tão nossa saudade (“Despedida”). E depois há essa pequena e pouca conhecida pérola que se chama “O Remorso” (interpretação vocal e instrumental superiores) e ainda outra, “Lembro-me de Ti”.
A capa de Siza Vieira ou o dueto com Carlos do Carmo são já bónus num disco perfeito.
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