Contra o sistema, cantar cantar
Roger Waters passa por Lisboa a meio de uma longa digressão mundial centrada numa leitura fortemente política da obra dos Pink Floyd
Em “Déjà Vu”, do seu disco mais recente, “Is This the Life We Really Want?” (2017), Roger Waters foi talvez um pouco longe de mais, pelo menos para alguns dos admiradores de sempre dos Pink Floyd (PF): “If I had been God, I believe I could have done a better job” (“Se eu tivesse sido Deus, acredito que teria feito um trabalho melhor”).
Especialmente a partir de 1977, com “Animals”, e depois com “The Wall” (1979), os PF transformaram-se numa das mais consistentes vozes críticas daquilo a que poderemos chamar sistema capitalista, numa acepção que extravasa a economia e abarca um vasto conjunto de valores sociais e culturais. Fizeram-no de forma eficaz, não através de cantos revolucionários, mas a partir de dentro, tirando partido de toda a parafernália tecnológica e de marketing proporcionada pela indústria musical, ou seja, pelo capitalismo, ele próprio. Foi também nessa época que consolidaram e deram nova escala a uma forma de espectáculo em que a música surge dramatizada num aparato cénico e audiovisual de grande envergadura e impacto.
Roger Waters foi o mago por detrás dessa fase, com David Gilmour em claro segundo plano, como tinha sido já ele a pegar no legado psicadélico de Syd Barrett e a dar-lhe um formato de enorme sucesso comercial – “The Dark Side of the Moon” (1973) é ainda hoje um dos discos mais vendidos de sempre.
Waters afastou-se dos PF em meados da década de 80, com duas consequências hoje evidentes: sob a batuta de Gilmour, a banda entrou em longa agonia criativa; a sua carreira a solo pouco mais é que uma canibalização dos tempos áureos dos PF.
Nas últimas três décadas, Waters lançou dois ou três discos com algum interesse e tem embarcado regularmente em digressões em que o prato forte é o acervo dos PF, tendo realizado já diversas encenações de “The Wall”.
Agora, aos 75, realiza aquela que será provavelmente a sua derradeira volta ao mundo. Literal, já que a digressão começou há exactamente um ano e promete prolongar-se ainda mais uns meses por todos os continentes.
São mais de duas horas de espectáculo, passando pelas canções do último disco a solo e por quase todos os grandes sucessos dos PF, numa leitura e alinhamento deliberadamente políticos. O título “Us and Them” remete para a temática da inclusão, tal como foi glosado num discurso de Obama, enquanto que, no polo oposto, Trump sai muito maltratado, especialmente durante o tema “Pigs”.
Àqueles que – aconteceu... – abandonaram concertos em sinal de protesto com tanta política, responde Waters: “É um tanto surpreendente que alguém ouça as minhas canções dos últimos 50 anos e ainda as não tenha entendido”. É, de facto.
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