Dylan é a medida de Dylan e isso pode ser um problema. Falamos do homem que, há cinco décadas, estabeleceu cânones, não apenas na música, mas na cultura tal como a entendemos no sentido mais lato. O problema é que esse Dylan, sendo a medida de todas as coisas, não é repetível, ou sequer comparável, e não é suposto que do mesmo Dylan surjam novos cânones. Por isso, chega a ser desonesto o que muita imprensa anglo-saxónica tem feito por estes dias – sobrevalorizar Tempest e estabelecer comparações, por vezes canção a canção, com as obras-primas (não há que ter medo das palavras) dos anos sessenta. O Dylan de Tempest é o Dylan que muito cedo percebeu a armadilha de ser um mito vivo, recusou o altar, tropeçou uma e outra vez, naufragou em discos menores, para se reerguer encarnado de novo em trovador de amores urbanos, paisagens interiores devastadas e um certo desencanto com o mundo. Há uma década que assim é. O ciclo que musicalmente se poderá catalogar como de pré-rock, construído com sonoridades austeras de blues, rockabilly, country. O início de Tempest faz lembrar um velho programa de rádio em Onda Média e é assim que somos desafiados para uma viagem que nos levará a territórios maioritariamente obscuros. A tragédia do Titanic reinventada, ao ponto de colocar na acção original o Leonardo DiCaprio da versão cinematográfica. O amigo Lennon, mais que o músico, evocado através das suas próprias palavras. Uma “Pay in Blood” com riffs de guitarra roubados aos Stones. Uma “Narrow Way” encharcada de blues do Mississipi. Uma “Scarlet Town” feita valsa triste, desconjuntada. O violino, ou o acordeão, a acentuarem a toada melancólica. E depois os poemas, jogos de enganos, em que cada um ouve o que quer, nem sempre ouvindo o que ouvira antes. Mas em que nada se aproxima do sublime. Caso para dizer que Dylan está em forma. Sim, mas.
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