A memória, já se
sabe, pode ser uma bênção ou uma maldição. Na música, então, nem se fala. Há
lá, na cultura popular, coisa que mexa mais com a memória do que uns três ou
quatro minutos de música e letra, com refrão apelativo e embrulho colorido com os
tiques da moda? Pois, a magia das canções... Paulo de Carvalho e João Gil, dois
dos nomes responsáveis por algumas das canções que mais marcaram a nossa
memória colectiva das últimas décadas, acabam de lançar discos em que lidam com
essa mesma memória. As abordagens são bem diferentes. Os resultados também.
Paulo de Carvalho
é uma das vozes mais marcantes do último meio século da música portuguesa, e o
facto de nunca ter alcançado uma carreira internacional diz mais sobre a nossa
periferia do que acerca dos seus dotes vocais e interpretativos. Para o disco
com que revisita 55 anos de carreira, optou por gravar 17 duetos com outras
tantas vozes da lusofonia, sobre orquestrações próximas das originais. E se o
próprio se revela como peixe na água, e em grande forma vocal, o mesmo já não
se poderá dizer de grande parte das vozes que com ele contracenam,
especialmente as mais jovens. Por vezes, chega a parecer que se trata de um
exercício de karaoke, em que uns “tenrinhos” esboçam uns improvisos e trejeitos
sobre a grande arte de Carvalho. Os duetos com Camané e Carlos do Carmo
sobressaem pela positiva, neste exercício que, por vezes, nos faz ter saudades
das primeiras versões.
João Gil é, desde
os Trovante (1976), um dos compositores mais presentes nas nossas vidas, mesmo
que por vezes não saibamos que são dele as canções (Ala dos Namorados, Rio
Grande, Cabeças no Ar, Filarmónica Gil...).
Assinala os 40 anos de carreira com um duplo CD em que revisita 18 dos
seus sucessos, junta 10 inéditos e convida 32 músicos de várias gerações para a
festa. “125 Azul”, na voz de Carlão e Lúcia Moniz, é bem o exemplo de
transfiguração a que se assiste por aqui. Ou a delicadeza com que Márcia aborda
“Memórias de um Beijo”, libertando-a da usura da memória. O mesmo com Luísa
Sobral com “Postal dos Correios”. Cada canção – e isso vale para as novas, mas
especialmente para as já conhecidas – foi sujeita a um meticuloso trabalho de
orquestração diferenciada, ficando a homogeneidade garantida pela marca de Gil.
A memória pode,
afinal, ser uma oportunidade para contar a mesma história da mesma maneira, ou
então reinventar tudo e construir novas memórias.
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