António Azambujo - Do Avesso *****

“Até o Fim”. Piano, depois as cordas, a seguir os sopros. Toda uma orquestra, toda ela muito subtil. A voz também. Tudo neste disco é pensado e concretizado com enorme subtileza, uma forma extrema de elegância. A canção é de Arnaldo Antunes, mas a sonoridade que salta ao ouvido é a dos discos mais sofisticados de Caetano. Essa ambiência brasileira, embora nada tropical, é talvez a marca mais distintiva deste disco. Claro que, amiúde, ainda apetece cantar em coro e até dançar, não temam os fãs. Há “Não Interessa Nada”, de Márcia, o “Catavento da Sé”, de Miguel Araújo, esta ideal para bailaricos românticos, e mesmo o beatleano “Sem Palavras”. O que já não há, neste 8.º disco, é traços de fado, apenas de cante, especialmente na belíssima “Retrato de Bolso”, de Aldina Duarte, que acaba praticamente em oração. Sem perder o pé do que lhe trouxe tanto sucesso, Zambujo parece querer abrir aqui um capítulo de simplicidade feita de densidade e detalhe. Paradoxos que funcionam.

Diabo na Cruz - Lebre ****

As referências dos Diabo na Cruz vão da ancestralidade da “procissão [que] ainda vai no adro” (“Procissão”) ao esperanto digital dos tempos modernos condensado no “não há emojis para o que sinto”, em “Roque da Casa”. Uma música ancorada em raízes folclóricas evidentes, que se deixa contaminar pela universalidade das guitarras e esquemas rítmicos de matriz anglo-saxónica (na longa “Montanha Mãe – Contramão” há guitarras portuguesas, mas há também ecos fortes do rock progressivo ou sinfónico de décadas atrás), para acabar novamente com os pés bem assentes na “Terra Natal” e num “Portugal”, meio vira, meio hino. E a meio da aventura, há uma tocante “Balada”, liberta de amarras. O puzzle, a justaposição de linguagens, é agora, ao quarto disco, mais complexa, mas igualmente mais consistente, com as costuras menos evidentes. Resultado de muita estrada, certamente, mas igualmente do tempo de respiração a que a banda se obrigou.

Luísa Sobral - Rosa ****

É o primeiro disco de Luísa Sobral após o megassucesso de “Amar Pelos Dois”, de que foi autora para a Eurovisão, em 2017. E é incontornável dizê-lo, desde logo, porque a canção, ao contrário do que seria expectável, não consta deste disco. Depois porque esse inesperado êxito talvez tenha incentivado Luísa a gravar o seu primeiro disco integralmente em português (exceção óbvia à edição infantil de 2014). Mas se “Amar Pelos Dois” não está fisicamente por aqui, o seu espírito paira por todo o lado. Seja pelo depuramento extremo da linguagem musical - Luísa nunca foi de grandes orquestrações, mas a produção de Raúl Refree eleva a subtileza a outro nível, ao assentar basicamente na guitarra, trio de metais e percussão -, seja pelo mundo encantando dos amores, que até se podem fazer de difíceis, mas acabam sempre felizes, quem sabe se para sempre. “Querida Rosa”, apenas com guitarra, ou “Dois Namorados”, com grande paleta instrumental, mas mesmo assim com a voz sempre em primeiro plano, são apenas dois exemplos extremos de um disco que pede tempo para ser ouvido.

Neko Case - Hell-on ****

“A minha voz é uma fractura (...) que te levanta e te senta / exactamente na linha d'água da tristeza.” Que ninguém venha ao engano, é assim que Neko Case canta logo na primeira canção, a que dá título ao CD. E, no entanto, este é, de longe, o seu mais luminoso disco, muito por culpa das orquestrações. Cada canção tratada como uma unidade, instrumentos e vozes pensados ao pormenor, encenados como se nada mais houvesse a seguir. E depois tudo recomeça. Sempre com a tal voz no centro, seja a da própria, seja em coro de “power ballad” com Eric Bachmann (“Sleep All Summer”, a única canção não original do disco, no caso um êxito dos Crocked Fingers), seja um fabuloso dueto a que Mark Lannegan apenas empresta a base (“Curse of the I-5 Corridor”), ou ainda no clímax/anticlímax de “Winnie”, com Beth Ditto (Gossip). Ao oitavo disco, Neko Case deixa ainda mais para trás o universo country, um berço que nunca lhe serviu.

Dirty Projectors - Lamp Lit Prose ****

Eventualmente, peca por exagero. De estilos musicais, de instrumentos, de colagens, de mudanças de rumo inesperadas. “(I Wanna) Feel It All” começa com música da renascença, evolui para jazz de cave nova-iorquina e espraia-se por um experimentalismo que tudo mistura. Os Dirty Projectors foram sempre assim, expansivos, híper-criativos, e a década e meia de estúdio e palco apenas terá contribuído para afinar esta música que não se deixa conter na classificação de indie cruzada com hip-hop. Acústica com electrónica – é o que fazem melhor. Aqui, “That’s a Lifestyle” dá-nos a ouvir um fabuloso trabalho de cruzamento de guitarras acústicas com eléctricas. Em “I Feel Energy”, os omnipresentes metais surfam caixas de ritmo, para mais à frente se fundirem mesmo com elas, em “Blue Bird”. E há alegria nesta exuberância, após o interlúdio sombrio da edição anterior (2017). Letras de regresso ao amor e aos encontros (“I Found It In U”), a condizer.

Huggs - Did I Cut These Too Short? ****

Não há lugar a contemplações. Mesmo “Troubles”, que chega de mansinho, guitarra dedilhada e voz espessa, o resto dos instrumentos a entrarem no ritmo, com tempo, acaba por explodir, a meio caminho, com a voz a elevar-se e a guitarra (as guitarras...) a soçobrar à batida pesada e suja das peles e do baixo. Sem contemplações. Nos outros cinco temas de que é feia a estreia do Huggs não há sequer a contemplação inicial. “Cocaine”, feito para rodar, é directo desde o primeiro segundo, como o são os grandes temas do punk. Duarte Queiróz (guitarra e voz) e Jantónio (bateria) são o núcleo da banda, a que se juntou, primeiro no estúdio e agora ao vivo, Guilherme Correia (baixo). “Take My Hand”, uma valsa punk algures entre os Walkmen e os Strokes, já andava por aí há uns meses e a rodagem dos festivais terá feito o resto, num disco de estreia invulgarmente consistente para estas paragens. Começo auspicioso.

Stephen Malkmus and The Jicks - Sparkle Hard ****

Uma serena energia. Um suave sarcasmo. É assim a música de Stephen Malkmus. Já era assim à frente dos Pavement, assim se manteve, a seguir a 1999, a solo e com os Jicks. Por comodidade, ou pela atitude, esta é uma música que costuma arrumar-se na prateleira do indie (“Solid Silk”, ou, num registo mais acústico, “Refute”), mas que lhe escapa sonicamente, seja para a psicadelia, graças à queda pelos sintetizadores (“Rattler”), seja para o rock mais clássico, por via dos insistentes solos e riffs de guitarra (“Kite”). Nesta sétima aventura, essa energia primitiva é ainda mais patente, com as guitarras num juvenil jogo de sedução dançante (“Shiggy”). Música nada neutra, quando aborda os temas da violência racial de origem policial (“Bike Lane”), ou do movimento #metoo (“Middle America”) e o sarcasmo fica um pouco menos suave que de costume. Nada é simples nem evidente por aqui, seja nas texturas musicais, ou nas letras alérgicas à banalidade. Disco de audição exigente.

Wild Beasts - Last NIght All My Dreams Came True ***

Há qualquer coisa de anti-climax neste disco. E é pena. Os Wild Beasts decidiram separar-se e deixar-nos em testamento esta colecção, que serviu de base à digressão de despedida. Trata-se de uma gravação ao vivo, mas em estúdio, que revisita uma década e meia de carreira expressa em cinco discos. A ideia, não sendo uma originalidade por aí além, tem tanto de interessante como de perigoso. Interessa sempre perceber como uma banda, um artista, revisita a sua obra, mas, por outro lado, esse regresso ao passado é quase sempre feito à luz do olhar, do modo de fazer as coisas, mais recente. No caso, quase metade (6 em 13) dos temas saem directamente do último disco (“Boy King”, 2026) e mesmo os mais antigos são formatados pela normalização que esse registo assinalava. “Hooting & Howling”, ou, por exemplo, “The Devil’s Palace” renovam a frescura inicial, mas na maioria dos casos estas regravações não adiantam grande coisa.

Camané, CCB, 11 e 12 de outubro


Os fados que o CCB vai ouvir já andaram por salas destas, amplas e improváveis. Pelo São Luiz, por exemplo, onde Alfredo Marceneiro se despediu da vida artística, em 1963. Mas estes são fados que nasceram e retratam uma Lisboa de outras eras, de bêbados pintores, de camareiras e ciganos alquiladores e, claro, de mariquinhas que viviam em ruas bizarras de janelas com tabuinhas. Histórias de poetas populares, a que Marceneiro deu tal corpo musical que muitos desses fados são hoje considerados tradicionais e a base de outros fados. O mais recente disco de Camané recupera esses temas, tal como o autor os idealizou e cantou, assumindo o risco do desencontro histórico-cultural – a visão da mulher em “Ironia” deve tirar do sério qualquer feminista – ou simplesmente o kitsch de quadros bucólicos ou burlescos estranhos às novas gerações. Fá-lo numa altura da sua carreira em que já nada tem que provar e pode, por isso, transportar Marceneiro para o lugar da sua voz em palco. Com Camané estarão José Manuel Neto, na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Neto, na viola, e Paulo Paz, no contrabaixo.

Stuart A. Staples - Arrhythmia ***

Não é propriamente um disco sobre o tempo, antes um disco em que o tempo se ouve, literalmente. Tomemos, por exemplo, “Memories of Love”, o tema de mais de 10 minutos que melhor expressa essa condição. Trata-se de uma canção, se isso lhe poderemos chamar, sobre os efeitos do tempo (lá está, mas isso não é o mais relevante...) no amor. A voz de Stuart Staples espraia-se, muuuuuito lentamente, sobre um fundo de piano eléctrico, campainhas (tubular bells) e pratos de bateria. A meio caminho, ou seja, aos 5 minutos, a voz silencia-se e depois são outros tantos minutos em que os instrumentos preenchem o silêncio e o tempo de texturas. Um disco fora da caixa, este, em que a voz e alma dos Tindersticks dá espaço à experimentação e à respiração. A peça central, de 30 minutos, é a banda sonora para mais um filme de Claire Denis, mas é nos outros três temas que vale a pena parar – parar mesmo –, para ouvir.