Steve Winwood - Nine Lives ****

Eis-nos, então, no Verão. E eis a banda sonora perfeita para tardes tórridas e serões amenos. Longas canções, sonoridades afro-latinas (sim, Santana, rói-te de inveja), jazz pouco comprometido, o blues na batida, a voz de sempre.
E a voz não é pormenor de somenos. Steve Winwood sempre a teve pujante, muito característica, negra demais para um britânico de gema. Esta voz, é sempre bom recordar, é identificável a léguas, pelo menos desde meados da década de 60 (Spencer Davis Group), mas especialmente dos tempos dourados (67/74) dos Traffic, essa mistura de blues, folk, psicadelismo e blues para o qual este Nine Lives remete tão explicitamente. Mais para aí do que para os grandes sucessos a solo, Arc of a Diver (1980), por exemplo.
A jóia desta coroa é, como não podia deixar de ser, Dirty City, os quase oito minutos em que o órgão e a voz de Winwood se cruzam com um espantosamente vibrante Eric Clapton, a fazer lembrar os mais que lendários Blind Faith (1969). Os minutos finais são, de resto, um dueto guitarra/voz como há muitos anos não se via.
Destaque merece também o belíssimo I’m Not Drowning de abertura, um clássico blues acústico com Winwood a fazer aquilo de que mais gosta, ou seja, a tocar todos os instrumentos.
O resto são longas digressões, reflexões filosóficas ou simples canções de amor e desamor, servidas por naipes variados de instrumentos, que quase sempre incluem o emblemático Hammond e as guitarras, mas que também supreendem com flautas, congas, saxofones e outras coisas. Uma das maravilhas dos discos de Winwood é precisamente, a par da voz única, o modo como sabe casar instrumentos, alternando entre o rigor da composição e a liberdade de curtos solos. Para ouvir sem pressas.

Alanis Morissette - Flavors of Entanglement ****

Comecemos pelo lado tablóide, que sempre agarra melhor a audiência: Ryan Reynolds trocou Alanis Morissette por… Scarlett Johansson. Uma opção que, enfim, até pode ser compreensível sob certos pontos de vista, mas que deixa muitas dúvidas sobre os gostos musicais do tal Ryan. Este disco, por exemplo, deixa a anos-luz a primeira e desastrada aventura discográfica da diva de Hollywood.
Mas a verdade é que Flavors of Entanglement está cheio de Ryan Reynolds por todos os cantos, já que se trata de mais um disco escrito na ressaca de uma ruptura sentimental e que só muito raramente consegue escapar a esse peso.
Em temas como “Tapes” (“I am someone easy to leave”) ou “Torch” (“I miss your warmth and the though of us bringing up our kids”) a separação é abordada de forma bem explícita, mas o assunto, assim como a necessidade de auto-afirmação após a ruptura, percorre todas as canções.
À semelhança dos discos anteriores de Alanis (o último é de 2004), trata-se de uma gravação densa. Com poemas de difícil digestão, hiper-metafóricos, repletos de referências cruzadas a várias realidades.
Essa densidade poética tem uma directa correspondência nas texturas musicais criadas por Guy Sigsworth (Bjork, Madonna), que produz e co-assina, e por Andy Page, multi-instrumentista, que desenha a maior parte das sonoridades densamente povoadas de sintetizadores, mas em que também ouvimos alguns arranjos de cordas e mesmo instrumentos de outras paragens (tabla, por exemplo). Aqui e ali, a densidade sonora chega a ser gongórica e, felizmente, há um ou outro tema mais límpido (como “Not As We”), em que a bela voz de Alanis é realçada apenas pelas teclas de um piano.

Maria Rita

Maria Rita é uma daquelas artistas que já tem um público certo em Portugal. Desde que lançou o seu primeiro disco (Maria Rita, 2003), que inscreve o nosso país na digressão respectiva (foi assim, também, com Segundo, de 2005). E agora, com este Samba Meu, do ano passado, a regra confirma-se.
A vasta comunidade brasileira explicará alguma coisa, mas o fenómeno Maria Rita é já universal (o primeiro disco já vendeu mais de um milhão de cópias em todo o mundo), para o que terão contribuído os Grammys latinos que entretanto recebeu.
Este terceiro disco, como se depreende do título, é integralmente preenchido por sambas, antigos e novos, e a imprensa brasileira, que a comparou à mãe (Elis Regina) na estreia, não tardou a compará-la à maior voz feminina do samba, Clara Nunes, também ela já desaparecida. O que só pode ser considerado um elogio, não fosse a irritante mania das comparações.
Maria Rita continua, é certo, com um timbre de voz que não a deixa mentir, mas o registo do samba permite-lhe mostrar outras tonalidades. Rezam as crónicas que os shows no Brasil têm sido de uma força e de uma elegância extremas, a que nem faltam as referências à sensualidade e beleza física de Maria Rita…
O espectáculo que agora traz a Portugal terá certamente muito de Samba Meu, com o respectivo apelo à festa e à dança, mas será inevitável que revisite alguns dos êxitos mais intimistas (“Cara Valente”, “Caminho das Águas”…), dos dois discos anteriores.

T Bone Burnett - Tooth of Crime ****

Vale a pena começar a ouvir este disco pela quinta canção, “Kill Zone”. Para perceber o que poderia ter sido um disco fora de série e acaba por ser apenas um disco de quatro estrelas. “Kill Zone” é uma daquelas canções que vão directas à alma. Ao coração, se quiserem. Uma superprodução que tem tanto de Roy Orbison (sim, ele até a co-assina, apesar de ter morrido em 1988), como da insanidade de Brian Wilson, sendo que se trata do mais puro T Bone Burnett.
O resto do disco merece, obviamente, uma audição atenta. E algumas das canções exigem ser reouvidas. Mas nada se compara àquela pérola de quatro minutos.
Digamos que o resto do disco sofre das consequências da circunstância – uma colecção de canções escritas ao longo do tempo (daí o quase-fantasma da autoria de Orbison…), com base num esqueleto destinado a uma encenação da peça homónima de Sam Shepard datada de 1996. Diga-se, já agora, que apenas uma das canções tem letra de Shepard.
Eis-nos, pois, perante uma espécie de banda sonora, escrita por um especialista em bandas sonoras (de filmes dos irmãos Coen, por exemplo), em produções alheias (Elvis Costello, Counting Crows…) e em lançar discos em nome próprio muito de vez em quando.
O disco está cheio das marcas digitais de Burnett (60 anos em Janeiro passado): o blues na base de quase tudo, um pouco de tex-mex, as vozes distorcidas, uma ambiência sonora envolvente, conseguida por vezes à custa de uma certa saturação instrumental, vozes distorcidas e poemas por vezes algo bizarros, com toques de ficção científica. E, claro, um naipe de músicos luxuoso, a começar por Jim Keltner na bateria, a passar pela voz de Sam Phillips (com que foi casado), para acabar na guitarra omnipresente de Marc Ribot.