PAUS - Madeira ****

Tudo gira em volta da bateria siamesa, seja quando se expõe em palco – e estamos perante uma banda de palco, de gestos largos –, seja quando a ouvimos, assim, em disco, sem descanso, sempre a bomb(e)ar, coração do sistema. Predomina, a bateria, mas não domina. Ou já não domina, como antes. As teclas, essas sim, exuberantes, assumindo várias, sucessivas e simultâneas formas, arriscam amiúde deixar tudo à beira do sufoco, mas é então que nos lembramos que tudo isto foi pensado para o palco e que, aí, faz todo o sentido. Esta é uma música que deve ao prog rock e ao kraut rock, mas que não se deixa aprisionar em classificações, apelando frequentes vezes à dança, como em “L123”, o tema mais apontado às rádios e tops, ou revelando mesmo longínquos ecos folclóricos (“A Mutante”), nos coros e na instrumentação. Na edição com DVD, a liberdade criativa da música encontra boa companhia nas paisagens inóspitas da Madeira.

Brandi Carlile - By the Way, I Forgive You ****

Um dos maiores contributos da country à música pop é aquele jeito de contar histórias com sentimento e uma moral. Os blues, mais sofridos, são também mais secos. Nada como a country para puxar a lágrima, frequentemente para lá do razoável, já na zona da lamechice. Isto, claro, quando não se tem bom gosto e bom senso. Brandi Carlile vem da country, tem muito senso e ainda mais bom gosto, é bem vinda na indie e sente-se muito à vontade na pop, como este sexto disco mostra de forma muito clara. As histórias que conta, sim é um disco de histórias, são densas, amargas, como a vida muitas vezes é. “Party of One” diz quase tudo no título e encerra o disco da melhor maneira, com cordas a grande altura e Brandi a levar ao limite o seu estilo interpretativo, a la Joni Mitchell, cheio de inflexões, projecções e falsettos. “The Mother”, num registo acústico e íntimo, e a perturbante “Sugartooth” são outros grandes momentos de um disco para o qual a etiqueta country é demasiado redutora.

Franz Ferdinand - Always Ascending ***

O primeiro minuto e meio do disco parece um regresso dos saudosos Housemartins, dos anos 80, só que, quando esperamos que o a capella progrida, salta lá de trás uma caixa de ritmo endiabrada e mudamos radicalmente de território. 
Percebemos que são os Franz Ferdinand porque os Franz Ferdinand soam a léguas a Franz Ferdinand mesmo quando não são exactamente os Franz Ferdinand de que guardamos boa memória. Porque, sejamos honestos, os FF nunca voltaram a ser aquela banda surpreendente, única, indispensável dos dois primeiros discos (2004 e 5). 
Este quinto assalto, volvidos que são cinco anos de silêncio, umas mudanças na banda (troca de guitarrista, mais um guitarrista e teclista novo) e uma colaboração com os Sparks (“FFS”, de 2015), deixa-nos em território de alguma perplexidade. 
Neste disco, como nos dois que se seguiram aos primeiros dois, a banda anda em círculos à volta dos conceitos que criou, deixa-se absorver amiúde pelas sonoridades da brit pop contemporânea (“The Academy Award”) ou retro (“Slow Don’t Kill Me Slow”), sem nunca realmente nos dizer nada de novo. A novidade, relativa diga-se, é a assolapada paixão pelo cruzamento da eletrónica com a pista de dança (“Feel the Love Go”, disco, disco, ou “Lois Lane”, mais na vertente funk, mas sempre com as teclas em evidência). Da verve original há um “Lazy Boy”, mais centrado nas guitarras que na electrónica, que sabe bem ouvir “em memória”, digamos. 
Um disco que, por vontade própria, se deixa dançar muito bem, uma banda não necessariamente perdida, mas pouco afirmativa.

Van Morrison - Versatile ****

Há pessoas, músicos também, que estão sempre lá, dos quais só nos lembramos muito de vez em quando, mas que estão sempre lá. Para o melhor e para o pior. Van Morrison é um desses músicos. Em 53 anos (!) de carreira, não há um disco seu que seja mau, ou até sofrível. E são muitos, quase 40, se não contarmos com os dos Them, no início de carreira. Todos discos acima da média, sempre disponíveis para que os ouçamos, resistentes às modas, perenes que nem rochedos. Van Morrison inventou um estilo, uma vocalização meio declamada meio improvisada, que espraia sobre orquestrações que tanto devem ao jazz, como ao blues e à música celta. Os últimos CD são quase excepção: este é só jazz, o anterior, de finais de 2017, era quase só R&B e blues. Dois terços de standards (Gershwin, Porter) , um terço de originais, sem surpresas, apenas o regular Morrison e um septeto com metais em destaque. Ou seja, a velha rotina, entre o bom e o muito bom.

Medeiros/Lucas - Sol de Março ****

A memória que mais nos assalta durante a audição deste disco é a de José Afonso. Nada a ver com empenhamento político, apenas o posicionamento estético e o risco da criatividade. Como pegar em ritmos e sonoridades de vários quadrantes, África e América Latina à cabeça, fazer a ponte da tradição popular para a contemporaneidade, aqui vincada com um recurso repetitivo ao minimalismo, e tudo isso servido por uma graciosidade serena da voz, às voltas com versos que fogem da facilidade. Ouça-se, por exemplo, “Podre Poder” ou “Galgar”. Há umas décadas que não ouvíamos música assim, com esta sede de perfeição. Este é o terceiro de uma série de discos que Carlos Medeiros (voz) e Pedro Lucas (composição) iniciaram, em 2015, com “Mar Aberto”, dedicado às emoções, e prosseguiram, em 2016, com uma obra mais colada ao corpo, “Terra do Corpo”. Agora, com letras de João Pedro Porto, chegamos ao terceiro capítulo, centrado na razão. Filosofia aural.