Silva canta Marisa ****

Este disco poderia ter sido gravado por Marisa. Aliás, Marisa canta neste disco, num tema inédito escrito com Silva (“Noturna”), um dos muitos que terão composto quando se conheceram, há dois anos. 
 disco bebe em Marisa não apenas as canções, mas também o jeito doce com que Marisa as interpreta. A diferença, aqui, é a simplificação orquestral a que são sujeitas. Silva transporta a tal doçura para o seu universo feito de hip-hop, acid jazz reggae e linguagens electrónicas e canções surgem-nos muito familiares, mas ainda mais distendidas do que em algumas das abordagens a que a autora as submeteu, por exemplo, em concerto. 
Interessante é perceber como, mesmo nesta abordagem, digamos, pós-moderna, as canções mantêm o balanço de samba, um samba lânguido, que é a marca característica de Marisa (“O Bonde do Dom”. Que não haja por aqui nada de surpreendente talvez seja mesmo a surpresa boa.

The Beatles - Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band *****

Têm chegado à nossa equipa de consultores várias mensagens que podem resumir-se a isto: “Mestres, devo comprar a reedição do Sgt. Peppers? É que já tenho tantas... é só mais uma, não é?” 
Não, não é. Passado meio século sobre a sua edição – é disso que trata a presente comemoração -, é já seguro afirmar que se trata de um feito inultrapassável. Notem bem, 50 anos é muito ano e tentativas não faltaram. Só que aquele equilíbrio perfeito entre génio e técnica, aventura e pés no chão, loucura e clarividência, é simplesmente único e, sim, inultrapassável. E a partir de agora – esse é o ponto – ainda mais o será. Giles Martin, filho de George, o “quinto beatle”, pegou nas gravações mono originais e misturou tudo de novo, mas em estéreo (o estéreo já existente era bastante fatela...). E é todo um novo mundo de sons, com os instrumentos muito definidos e bem localizados. As guitarras, essas, são uma maravilha... 
Portanto, só isso já seria muito bom, e há até uma edição “só” com isso. Mas o que vale mesmo a pena é procurar um dos muitos formatos (tudo depende da bolsa...) em que surgem os vários extras, basicamente gravações de teste. E é simplesmente fabuloso ouvir aqueles quatro à procura do registo certo. Por exemplo, as várias versões de “Strawberry Fields Forever” (gravada para surgir no Sgt. Peppers, mas que acabou por sair, antes, num single). 
Ouvem-se algumas destas versões e imagina-se facilmente como o disco de 67 poderia ter sido diferente de tantas maneiras e todas elas muito boas. Ou então o take 8 da reprise da canção que dá nome ao disco, que na prática é uma versão ao vivo, exemplar do que poderiam ter continuado a ser os Beatles se a história tivesse sido outra. Comprar? Mas alguém duvida?

Paulo de Carvalho - Duetos **
João Gil - Por... ****


A memória, já se sabe, pode ser uma bênção ou uma maldição. Na música, então, nem se fala. Há lá, na cultura popular, coisa que mexa mais com a memória do que uns três ou quatro minutos de música e letra, com refrão apelativo e embrulho colorido com os tiques da moda? Pois, a magia das canções... Paulo de Carvalho e João Gil, dois dos nomes responsáveis por algumas das canções que mais marcaram a nossa memória colectiva das últimas décadas, acabam de lançar discos em que lidam com essa mesma memória. As abordagens são bem diferentes. Os resultados também.


Paulo de Carvalho é uma das vozes mais marcantes do último meio século da música portuguesa, e o facto de nunca ter alcançado uma carreira internacional diz mais sobre a nossa periferia do que acerca dos seus dotes vocais e interpretativos. Para o disco com que revisita 55 anos de carreira, optou por gravar 17 duetos com outras tantas vozes da lusofonia, sobre orquestrações próximas das originais. E se o próprio se revela como peixe na água, e em grande forma vocal, o mesmo já não se poderá dizer de grande parte das vozes que com ele contracenam, especialmente as mais jovens. Por vezes, chega a parecer que se trata de um exercício de karaoke, em que uns “tenrinhos” esboçam uns improvisos e trejeitos sobre a grande arte de Carvalho. Os duetos com Camané e Carlos do Carmo sobressaem pela positiva, neste exercício que, por vezes, nos faz ter saudades das primeiras versões.


João Gil é, desde os Trovante (1976), um dos compositores mais presentes nas nossas vidas, mesmo que por vezes não saibamos que são dele as canções (Ala dos Namorados, Rio Grande, Cabeças no Ar, Filarmónica Gil...).  Assinala os 40 anos de carreira com um duplo CD em que revisita 18 dos seus sucessos, junta 10 inéditos e convida 32 músicos de várias gerações para a festa. “125 Azul”, na voz de Carlão e Lúcia Moniz, é bem o exemplo de transfiguração a que se assiste por aqui. Ou a delicadeza com que Márcia aborda “Memórias de um Beijo”, libertando-a da usura da memória. O mesmo com Luísa Sobral com “Postal dos Correios”. Cada canção – e isso vale para as novas, mas especialmente para as já conhecidas – foi sujeita a um meticuloso trabalho de orquestração diferenciada, ficando a homogeneidade garantida pela marca de Gil.

A memória pode, afinal, ser uma oportunidade para contar a mesma história da mesma maneira, ou então reinventar tudo e construir novas memórias.


Mark Lanegan Band - Gargoyle ****

Como um vendedor de caixões. Como se faz? Elogia-se o conforto dos tecidos interiores? A robustez das madeiras? Talvez a climatização... O mesmo com Mark Lanegan. As capas, os títulos, as letras, tudo tresanda a morte, negrume, morbidez. É certo que com alguns toques de humor, negro evidentemente. Apesar de todo esse odor a morte, a música de Lanegan é muito audível e, daí, recomendável. Acontece até que este 10.º a solo, 4.º em nome de ML Band, é muito bem conseguido. A eletrónica omnipresente há uns tempos, assim continua (“Drunk on Destruction”), mas as guitarras também estão por todo o lado, quebrando o rame-rame das teclas e dando alma às canções (“Emperpor”, ou “Behive”, quase-homenagem aos U2, num disco “herdeiro” dos New Order e, mais longinquamente, dos VU. As baladas aliviam um pouco a carga e há mesmo uma (“Goodbye to Beauty”) que, no seu acabamento acústico e apesar do título, nos faz acreditar que há luz.

Sheryl Crow - Be Myself ***

I told you to be discreet / But you went to the world and you broadcast me. O novo disco de Sheryl Crow é uma curiosa divagação pelo mundo contemporâneo, a que nem falta Trump, o Twitter e os espiões russos. Cena deprimente, portanto? Nem por isso, porque quem a conhece sabe como gosta de dar a volta a essas cenas com ironia e humor. Put your phone away / Let’s roller skate. Depois da aventura country dos últimos discos (especialmente de “Feels Like Home”, de 2013) esta edição marca o regresso ao início da carreira (anos 90), numa espécie de auto-retro. Influência country, sim, mas isto agora é mesmo pop. Sem complexos, com muita guitarra, pormenores sonoros divertidos, apelo à dança. A fazer lembrar “All I Want to Do”, do disco de estreia (93). Porque, como canta na canção que dá título ao disco: If I can’t be someone else / I might as well be myself. Disse-lhe o psicólogo, mas qualquer um de nós lhe diria o mesmo.