Bob Dylan - Triplicate *****

Os títulos destas 30 canções estão impressos em cada um dos três discos que compõem a colecção. E ainda mais duas vezes: num sucinto desdobrável e no interior da capa. Em nenhum desses locais Dylan arranjou espaço para identificar os seus autores. E, no entanto, estamos perante canções de monstros sagrados do cancioneiro americano: Irving Berlin, Jerome Kern, Hoagy Carmichael, Richard Rodgers, Oscar Hammerstein... É certo que algumas serão tão conhecidas que nem precisam de apresentação – boa desculpa... – mas outras não passam de obscuras baladas. Conforme escreve Tom Piazza, no tal desdobrável – e já tínhamos percebido pelos dois discos anteriores de Dylan no mesmo registo (“Shadows in the Night”, de 2015, e “Fallen Angels”, de 2016) -, estamos perante um exercício de apropriação radical das canções. Dylan não pretende cantá-las melhor que ninguém, nem sequer descobrir e mostrar um ângulo novo sobre cada uma delas, mas apenas interpretá-las como se fosse possível nesse gesto revelar-lhes uma qualquer essência. Essa apropriação, pelos vistos, inclui a anulação de qualquer traço de autoria, algo que o próprio músico abomina, logo ele que tão cioso é dos seus direitos de autor... Enfim, mais uma das idiossincrasias do velho Bob. 
E, já agora, o crime compensa, ou seja, essa apropriação resulta? Estranhamente, sim. Estranhamente porque, à terceira ronda, a ideia de Dylan a imitar Sinatra (sim, é novamente o repertório da Voz que está na baila...) permanece uma contradição nos seus próprios termos. E compensa porque ouvir, por exemplo, “September of my Years” ou “These Foolish Things” nesta voz, com um quinteto em que apenas sobressai a guitarra, é uma experiência quase mística. Perto, talvez, do propósito disto tudo.

José James - Love in a Time of Madness ****

Se fosse necessário apresentar um exemplo contemporâneo da enorme influência de Prince na música que se pratica nos territórios de intersecção de brancos e pretos, esse disco seria esse. Especialmente nos temas colocados a meio do disco: “Last Night”, “Live Your Fantasy” e “Ladies Man”. E, se os dois primeiros são quase Prince original, já o terceiro parece herdeiro indirecto, por via de Pharrell Williams. Esta é claramente a aposta mais conseguida desta quarta gravação de José James para a Blue Note. Depois da abordagem conservadora, embora nada menor, à obra de Billie Holiday (2015) agora é a vez de experimentar uma enorme expansividade sónica pelas zonas de dança, R&B e funk. A base é frequentemente um simples e esparso pulsar electrónico (“Always There”), sobre o qual a voz de veludo de James se faz evidenciar (“To Be With You”). E depois há umas coisas mais tipo John Legend (“Remember Our Love”), que, sendo menos brilhantes, não deslustram.

The Magnetic Fields - 50 Song Memoir *****

Cinco motivos pelos quais vale muito a pena ouvir os cinco discos com que Stephin Merritt celebra o seu 50.º aniversário através de 50 canções em que toca 50 instrumentos. 
O autor. Stephin Merritt é a modos que um génio. Herdeiro dos grandes compositores americanos do século XX, pela via de Burt Bacharach, num universo a que não são alheios Phil Spector e Brian Wilson. Em 1999, publicou um triplo CD, com o título muito apropriado e literal de “69 Love Songs”, um objecto absolutamente intemporal, tal é a sua perfeição. Stephin não é a alma dos Magnetic Fields. Stephin é os Magnetic Fields. 
O conceito. Este é um disco de não-ficção, de certa maneira, no sentido em que todas as autobiografias são construções meticulosas. As palavras são do próprio autor, numa longa e interessante entrevista que integra esta edição. A cada ano da sua vida, Merritt faz corresponder uma canção. 50 no total. 
As canções. As canções não se limitam à biografia. Têm a mãe, é certo, e o gato Dionysius e os muitos amores falhados. Mas são também sobre o sujeito no seu contexto. A epidemia inicial de SIDA que ceifa as amizades em redor, os jogos de computador, Londres e Nova Iorque. As canções de Merritt são quase sempre pequenos contos, narrados com um simplicidade e naturalidade desarmantes. 
A interpretação. A imaginação à solta, como raramente se encontra na música. As canções de Merritt lembram muitas vezes caixinhas de música, pela simplicidade com que se apresentam. Mas são caixinhas sempre diferentes e a simplicidade é apenas aparente. Pouca gente casa de forma tão perfeita os instrumentos acústicos com a eletrónica, talvez pela sobriedade com que esta última é abordada. 
O amor. Não terá sido por acaso que fez um disco com 69 canções sobre o tema. Agora, destas 50, poderia juntar-lhes mais umas trinta, talvez. Da acidez da desilusão à esperança de um Cupido que acaba sempre por aparecer, nem que seja na exacta última canção. 

Regina Amália ****

Uma edição de três discos que recupera a história de amor de Itália pela nossa maior fadista. Uma história com muito pouco fado


















Amália foi, não apenas a nossa melhor fadista, mas também a artista portuguesa que atingiu maior fama mundial. Esta edição é disso a prova, através da exposição exaustiva da sua passagem por Itália, onde durante três décadas foi tratada por Regina (Rainha) Amália.
Em 1966, Amália actuou no Lincoln Center e no Hollywood Bowl, acompanhada de orquestra, em 1970 lança o disco com Vinícius, em 71 sai “Amália no Japão”, em 72 “Amália em Paris” (o Olympia é de 57...) e, em 76, sai “Amália no Canecão”. Embora sempre tenha actuado com sucesso no estrangeiro, a década que se inicia em meados dos anos 60 foi uma era de ouro na carreira internacional de Amália. No entanto, foi em Itália que alcançou o maior êxito. A fadista percorreu o país de norte a sul, encheu as maiores salas, foi incensada pela imprensa – de tudo isso esta edição dá conta e documenta.
O grande segredo de Amália para essa conquista do mundo não foi, porém, o fado, mas sim o folclore. Nessa época, lançou o seu grande disco de fado, “Com Que Voz”, com os maiores poetas lusófonos musicados por Alain Oulman, mas edita também vários discos de folclore português, alguns deles reunidos nas colectâneas “Amália Canta Portugal”. É fruta da época: a apropriação do folclore pela música clássica, vinda do início do século, estende-se à música de grande consumo, seja na pop-rock anglo-saxónica, seja, por exemplo, por cá, com o outro grande vulto português desse tempo, José Afonso. É, aliás, em 1971 que se estreia na televisão “Povo que canta”, com as recolhas etnográficas de Michel Giacometti.
Não é, por isso, de estranhar que, nesta edição, das cerca de 60 interpretações que recolhe, surjam apenas pouco mais que meia dúzia de fados. É certo que um dos discos é especificamente dedicado ao folclore italiano (e essa é outra peculiaridade da relação de Amália com o país), mas mesmo no disco que reúne a sua atuação no Teatro Sistina (Roma, Novembro de 76) o fado é escasso e o palco é todo para o folclore, seja ele português, italiano ou espanhol, ou para as derivações, como seja o “Porompompero”, um grande êxito castelhano da época que Amália incorpora no seu repertório ao vivo.
Itália, o carinho e entusiasmo com que é recebida, marcam também uma mudança mais funda em Amália. Apoiada pelos avanços tecnológicos (microfones portáteis), movimenta-se pelo palco, desenvolve grandes gestos, que definirão a sua imagem, e, tendo como pano de fundo o coro da assistência, desenvolve aquele improviso entaramelado (trálaralá) que se torna marca de água quando sai do fado e interpreta temas populares.
Esta edição, coordenada por Frederico Santiago, integra-se na cuidada reedição das suas obras iniciada há poucos anos, e disponibiliza pela primeira vez entre nós registos inicialmente destinados ao mercado italiano.
O primeiro disco reproduz o LP “A Uma Terra che Amo” (1973), que reúne dez temas do folclore italiano de vários séculos e regiões. Nos extras, surgem coisas tão dispersas, mas interessantíssimas, como versões de canções do festival de Sanremo (“Canzone Per Te”, celebrizada por Roberto Carlos), versões italianas de “Coimbra” e “Barco Negro”, ou mesmo um fado em italiano “Mio Amor, Mio Amor”, com letra de Ary dos Santos).
Os outros dois discos recuperam gravações ao vivo. A integral de “Amalia in Teatro” (76), com folclore em três línguas (impecável, o italiano falado e cantado de Amália) e alguns fados. Muito interessante, a definição de fado com que introduz “Povo que Lavas no Rio”: fado é o destino (do latim “fatum”), um “destino bruto, cativo, triste”. O terceiro disco junta gravações ao vivo realizadas em vários locais de Itália para um documentário de Augusto Cabrita, que acabou por nunca ser editado e cujas imagens desapareceram. E essa talvez passe a ser a grande falha na história de Amália – agora, que começamos a ter acesso até a algumas gravações perdidas, é pena que toda a força das suas actuações ao vivo não nos seja devolvida através de gravações de vídeo. Existirão?

Depeche Mode - Spirit ****

São tempos duros, estes que vivemos. Tempos sombrios, angulosos, frios. A música dos Depeche Mode sempre andou por territórios de uma certa aspereza, moldados pela omnipresente eletrónica. A espiritualidade dos seus temas funcionava, assim, como saída de emergência. Agora, com “Spirit”, curiosamente, é a materialidade que se impõe. A matéria das notícias, de Trump ao Brexit, da erosão da política à ilusão da economia. A resposta dos Depeche Mode desenvolve-se em três frentes: o puro niilismo sobre a condição humana (“Going Backwards” ou “The Worst Crime”); o pegar em armas contra toda esta situação (“Where’s The Revolution”); e, sim, a tal resposta espiritual de sempre, por exemplo sob a forma prosaica do amor (“So Much Love”), ou da carnalidade de “You Move”. Cinicamente, poderemos sempre concluir que toda esta crise lhes faz muito bem. Este é o melhor registo da banda em muitos anos.