Mazgani - Lifeboat ****

O que ouvimos quando ouvimos uma canção? Ouvimos a canção, certamente, a sua essência, mas ouvimos também a sua circunstância: a voz, os instrumentos, o modo como tudo se conjuga, o ar do tempo que a ela se agarra. E ouvimos também, nas canções, a nossa voz interior, o modo de ouvir que faz com que uma canção possa ser uma e tantas coisas, conforme quem a ouve. Este quarto disco de Mazgani é uma excelente proposta para o jogo de ouvir canções. Pegue-se no disco e ouça-se a canção número 3, sem tratar de saber previamente o que se vai ouvir. É possível que, passados os primeiros 70 segundos, o verso "these arms of mine" diga alguma coisa a algumas pessoas, mas também é provável que outras tantas não cheguem a perceber que estão perante um dos maiores êxitos de Otis Redding. A soul vibrante é trocada por um blues, arrastado primeiro, angustiante no final, que desfigura totalmente o original. De certa forma, já não é mesma canção que ouvimos... Mas, no tema seguinte, "Love Me Tender", a voz de Mazgani, em registo quase improvisado, remete-nos claramente para Elvis. Mais à frente, o gospel de "Cannan Land" dá azo a algo completamente diferente (e muito bom), para logo de seguida um tema de Cohen ser simplesmente... Cohen. Ou seja, o tratamento a que as canções são sujeitas não obedece a qualquer outra ordem que não seja a voz/vozeirão de Mazgani e a base de blues que, de resto, é a marca de toda a sua obra. Esse trabalho de apropriação faz-se sobre um corpo relativamente disforme, que vai de PJ Harvey a Chavela Vargas, de Cole Porter aos Bee Gees, e que funcionará como homenagem às principais influências, mas também como manobra para incorporar estes "corpos estranhos" na narrativa em nome pessoal que este iraniano a viver em Portugal encontrou nas raízes da música anglo-saxónica.