Ringo Starr - Liverpool 8 ***

Convenhamos: a quem passa pela cabeça comprar um disco de Ringo Starr? Sim, à parte a família do próprio, apenas aos fãs dos Beatles. Ringo era o baterista, será preciso lembrá-lo?, aquele a quem davam as canções patetas, que mesmo assim as desafinava, e que nas entrevistas era… ligeiramente…uh… grunho? Para os fãs, a verdade é que, aos 67, o homem está aí para as curvas. É claro que continua a desafinar, ou pelo menos a cantar muito mal, e é claro que as canções continuam ligeiramente… patetas. O disco é produzido por David Stewart (ex-Eurythmics), o que lhe dá uns ares de modernidade. Mas as canções sairam directamente do mesmo baú em que os Beatles encontraram a “Obladi, Oblada”. Ou seja, anos 50 e 60, numa versão bem humorada.

Damien Rice - Live From The Union Chapel ****

O irlandês Damien Rice talvez seja um dos menos produtivos autores da música contemporânea. Tem dois discos de originais no mercado (0, de 2002, e 9, de 2006) e lança agora oficialmente uma gravação ao vivo, efectuada em 2003, que recupera quatro canções de 0, mais três que só sairam em single e uma versão de… “Silent Night”. São canções de um enorme lirismo, de uma beleza radical, que falam de amor, mas também de raiva e de desespero. A gravação ao vivo pouco difere dos originais, ou seja, os arranjos vão da simplicidade extrema à orquestração saturada, tudo dentro da mesma canção. Veja-se, por exemplo, “The Blower’s Daughter”, o seu maior sucesso comercial. Lisa Hannigan, autora das letras, é, como de costume, a voz feminina.

Charles Aznavour

O último adeus ao século XX

Aznavour anda a despedir-se do mundo. Um adeus a uma certa forma de viver a música

O concerto que Charles Aznavour vai dar esta semana em Lisboa, mais que um adeus ao artista, constitui uma autêntica despedida ao século XX. Não apenas, nem principalmente, à música desse século, mas a um certo modo de viver e fazer a música.
Aznavour é do tempo da rádio, dos discos de vinil e dos espectáculos ao vivo, suados, teatro atrás de teatro. Mas é também de um tempo em que a indústria musical ainda nem sequer existia. Ou, quando passou a existir, se dirigia a um público adulto. Aznavour não é deste tempo do vídeo, dos tops, das superproduções, da juvenilização de toda a cultura de massas.
Já em 1966, estavam os Beatles nos tops abrindo caminho à massificação, Aznavour escrevia, em “La Bohéme”, aquela que se tornaria um dos seus hinos: “falo de um tempo que os menores de vinte anos não podem conhecer…”. E isto foi há 40 anos.
A digressão mundial que iniciou há dois anos, que promete prolongar por mais dois ou três se a saúde permitir, e que a imprensa gosta de apresentar como “de despedida” (ele prefere dizer que se trata, apenas, da última digressão mundial, não de um adeus), é, assim, um exercício de nostalgia para a grande maioria e uma aventura quase arqueológica para os que quiserem arriscar. E olhem que não há por aí mais Sinatras, Bécauds ou Amálias para mostrarem como era…
Numa entrevista que deu há dias a Judite de Sousa, na qual confessou a sua paixão pelo “tom anilado” que torna único o céu de Lisboa, o cantor francês falou das suas influências: Piaf (e Amália e… Janis Joplin), pela maneira como encarnaram personagens musicais, Charles Trenet, pela música ela própria, e Maurice Chevalier, pela forma como se afirmou internacionalmente.
Na mesma entrevista, distinguiu muito claramente o que é o seu trabalho quotidiano e disciplinado, ou seja, a composição, daquilo que é um verdadeiro prazer, as actuações ao vivo.
Nascido em Paris, há 83 anos, numa família de artistas de origem arménia, Aznavour mergulhou muito cedo no mundo da música e do teatro. Em seis décadas de carreira, escreveu quase mil canções, vendeu mais de 100 milhões de discos, participou em dezenas de filmes (Tirez Sur Le Pianiste, de Truffaut, por exemplo) e fez digressões à volta do mundo que duraram anos. Em Portugal, actuou meia dúzia de vezes, a última das quais, há três décadas, no antigo Cinema Monumental, o que é bem revelador do divórcio do burgo em relação à música de raiz latina. Quantos, mesmo de entre os seus fãs, saberão que tem uma canção chamada “Lisboa” no disco Je Voyage, lançado em 2003?
A sua ligação a Portugal faz-se principalmente através de Amália, que conhece na Bélgica e de quem se tornou amigo. Foi para ela que escreveu “Ay Mourir Pour Toi”, como escrevera tantas canções para Piaf (com quem cultivou uma amizade que alguns garantem ter sido mais que isso), Juliette Greco e tantos outros artistas. Em plenos anos 60, já com a chamada chanson em declínio, esteve nos tops de voz presente, com “Que C’Est Triste Venise”, e através de Sylvie Vartan (“La Plus Belle Pour Aller Danser”) e Johnny Hallyday (“Retiens La Nuit”). Ou seja, não abdicando do seu próprio estilo, adaptou-se com relativa facilidade aos tempos que corriam. Mesmo os menos atentos à música não anglo-saxónica deverão conhecer “She”, celebrizada por Elvis Costello na banda sonora de Notting Hill.
A mesma coisa quanto aos temas das canções. É claro que o amor parece ser dominante, mas a ecologia, os hábitos de vida, ou os direitos humanos estão presentes em muitas das suas composições, principalmente nos tempos mais recentes. E levou essas preocupações para um terreno mais prático, por exemplo, criando um fundo para ajudar a Arménia devastada pelo sismo de 1988.
Há três anos, por alturas do seu 80.º aniversário, multiplicaram-se as reedições e o lançamento de colectâneas, com alinhamentos não muito diversos do espectáculo que traz a Lisboa. Em plena forma artística, garante que não tem medo da morte, apenas não gostaria de morrer, e que se sentirá satisfeito se for recordado por duas canções. A sua preferido é “Sa Jeunesse”, escrita nos tempos de juventude.

Madonna, Como Um Ícone *****

A virgem prostituta que virou ícone
Inquérito exaustivo à construção de um dos maiores mitos da música pop.

O disco Like a Prayer, de 1989, mostra na capa um grande plano do ventre nu de Madonna emergindo de uns jeans debotados e de fecho prestes a soltar-se. Apenas mais uma das imagens provocantes da diva? Lucy O’Brien, autora de Como um Ícone, vê nessa imagem muito mais. Em seu entender, trata-se de uma referência a um episódio da infância, do dia em que a mãe, uma fervorosa católica, cobriu, como mandavam as regras, o Sagrado Coração com panos, quando em casa entrou uma mulher de calças de ganga e fecho eclair, coisa ainda rara nesse final dos anos 1950.
Para O’Brien, esses primeiros anos de ambiente fortemente católico são a chave fundamental para perceber Madonna. Quase tudo que ela viria a fazer seria por oposição a esse tempo e, de certa forma, à mãe, num persistente exercício de libertação. Por exemplo, a forte expressividade da artista será um contraponto à imagem da mãe morta num caixão aberto, com os lábios cosidos, tinha ela cinco anos.
Se um dos pólos do ícone é a religião, presente de forma explícita e provocatória em muitos seus clips e concertos, o outro será obviamente o sexo. Que Madonna pratica desde muito cedo, com muita gente, em todas as formas imagináveis pela mente humana. Essa tensão virgem/prostituta, explorada a partir do sucesso-símbolo de “Like a Virgin”, será pois a marca de água à volta da qual se desenvolverá toda uma carreira.
A obra de O’Brien tem muito sexo, por vezes explícito, tem droga, ambientes desvairados (no primeiro filme amador em que participou, alguém estrela um ovo no seu ventre, por entre alusões lésbicas), episódios escaldantes, mas sempre na justa medida necessária à explicação do crescimento artístico de Madonna.
O livro está, de resto, nos antípodas das biografias tablóides tão comuns quando se fala de estrelas, constituindo, pelo contrário, um exaustivo exercício de investigação sobre a artista enquanto tal. De como começou pela dança, da influência visual do punk e de Debbie Harry (“Aquela devia ser eu”, terá comentado a vocalista dos Blondie, no auge da fama de Madonna), das raízes musicais na música de dança e especialmente no disco, do modo como soube reinventar-se a cada passo, do suor que tudo lhe custou. E, claro, da mestria com que sempre soube captar, ela própria e não outros por ela, as tendências em germinação, tornando-se assim ela mesmo vanguarda.
Apesar de ser escrito por uma fã confessa, o livro não esconde os falhanços, seja na música (especialmente interessantes são os capítulos iniciais, em que a cantora e os que sucessivamente a rodeiam tentam definir o som que melhor se lhe cola), seja noutras aventuras em que se meteu, entre as quais avultam as cinematográficas.
O’Brien tem uma já consistente bibliografia na área da música e percebe-se a cada página que sabe do que escreve, que conhece os nomes e as tendências que marcaram, publicamente e nos bastidores, a cena pop das últimas décadas. Além disso, alicerça tudo em dezenas de entrevistas a músicos e a outras pessoas que conviveram com Madonna.
Além de fotografias que ilustram as sucessivas facetas da cantora, o livro integra ainda listagens sobre quase tudo o que com ela se relaciona, sejam discos, livros, videoclips, filmes, etc, o que torna numa obra de referência.
A tradução é cuidadosa, tendo havido o cuidado de incluir algumas notas de rodapé acerca de termos intraduzíveis.
É claro que escrever uma “biografia definitiva” de alguém com 50 anos e que se reinventa com tanta frequência é um enome risco. Pode sempre haver um segundo volume, é certo, mas e as teses defendidas no primeiro? No final do livro, a virgem-prostituta começa a dar lugar à estrela milionária instalada em Londres, que alguns dizem já conservadora. Quem nos garante que Madonna não nos surpreende e inventa outra Madonna? Vai uma aposta?

Sheryl Crow - Detours ****

Eis um disco que poderá fazer o consenso à volta de Sheryl Crow. Os que vêem nela apenas mais uma loira de sucesso têm a primeira parte, uma meia dúzia de cançõezinhas muito preocupadas com o mundo, mas ainda mais com os tops. Quem entende que estamos perante uma compositora mais que mediana, embora sem exageros, que se atire directamente para a segunda parte do CD, onde encontra alguns temas de maior espessura. Digamos que Detours tem um lado solar e um lado lunar, sendo que no segundo Sheryl Crow se sai bastante melhor, mesmo que seja o primeiro a trazer-lhe a fama.
Estas 14 canções rompem um silêncio de três anos muito preenchidos na vida da artista. Venceu um cancro da mama, namorou e separou-se do super-veloz Lance Armostrong e adoptou uma criança. Tudo isto é contado na segunda parte do disco, em canções como “Make It Go Away” (a doença), “Diamond Ring” (a separação), ou “Lullaby for Wyatt” (o filho). Um registo autobiográfico deliberadamente explícito, que poderemos tomar à conta de exorcismo.
Na primeira parte, é a Sheryl Crow activista que se apresenta, num tom capaz de irritar qualquer alma menos pacifista. Bush é chamado de mentiroso, apela-se à paz universal com recurso à língua árabe e proclama-se o amor e a gasolina, ambos gratuitos, ou livres, se quiserem (a língua inglesa ainda é mais traiçoeira que a nossa).
Lennon e Harrison, lá nas alturas, é que hão-de estar em delírio. Não apenas com as guitarras do segundo, em “Love Is All There Is”, nem com a variante lennoniana de “Peace Be Upon Us”, mas com o tom claramente beatleano que embebe a maioria das canções. Sem complexos, um disco que ombreia com os melhores de Sheryl Crow.