Jamie Cullum- Momentum ***

Deixaram o miúdo à solta e é o que se ouve. Na verdade, Cullum já não é tão miúdo assim e este disco, se estilhaça a imagem do bem comportadinho com piano à frente, é mais sinal de maturidade que de infantilidade. O piano continua presente por todo o lado, mas agora claramente ofuscado por uma sonoridade que cruza batidas soul de há umas décadas com uma electrónica esparsa e pragmática apontada aos tops (quem verdadeiramente fica a perder são os violinos...). "Edge of Something" e "Everything You Didn't Do" são apenas duas desenvoltas amostras desse novo espírito. "Love For Sale", a versão que confirma a regra, e "Pure Imagination", a excepção orquestrada que nos liga aos cinco discos anteriores. Um disco, enfim, que se arrisca a não agradar a ninguém, nem às fãs apaixonadas de sempre, nem aos críticos desconfiados com meninos prodígio. Mas só esse desconforto do risco é já uma confortável vitória.

Maria Rita


Há um ano atrás, quando Maria Rita aceitou o desafio de homenagear a mãe, por ocasião dos 30 anos do seu desaparecimento, pode fazê-lo de consciência tranquila - tinha atrás de si uma década e quatro discos que a confirmavam como cantora por direito próprio. Porque Maria Rita teve que resolver, talvez até perante si própria, essa bênção que era também a sua maior maldição, aquele timbre que faz recordar a cada respiração a enorme voz da mãe Elis Regina. Dessa homenagem, nasceu um disco duplo ("Redescobrir") e uma digressão, que passa agora por Portugal. Timbre à parte, basta ouvir, por exemplo, a versão ao vivo de "Como Nossos Pais" para perceber que Elis não é imitável. Trata-se, pois, de uma homenagem, não de uma (impossível) recriação, mesmo que o tal timbre traia amiúde a cantora e quem a ouve. Uma boa oportunidade para recordar clássicos como "Águas de Março" ou "Arrastão".

Alicia Keys


Quando Alicia Keys canta sobre uma "Girl on Fire", fá-lo na terceira pessoa. E isso faz toda a diferença. Fossem Beyoncé ou Rihanna a cantar e a tal rapariga em chamas (ardente) estaria na primeira pessoa, como, aliás, no vídeo da segunda com Eminem ("Love the Way You Lie"). Com essas duas divas da neo-soul, estamos no território do explícito - elas mostram tudo, sejam os sentimentos, sejam as pernas. Em palco, são máquinas programadas para continuar esse jogo de hiper-exibição. Alicia Keys é diferente, muito diferente. A zona mais erógena do seu corpo nem sequer está à vista, já que é com as cordas vocais que mais nos seduz. Por isso, nada que enganar - espectáculo com pirotecnia carnal, só no regresso da Rhianna ou da Beyoncé. Não que Alicia não dance, só que a sua dança faz-se mais de insinuação que de transpiração. Os seus gestos limitam-se muitas vezes a leves esboços e, ao vivo, deixa o fitness para os dançarinos convidados. Os concertos de Alicia Keys - e Lisboa já assistiu a quatro, tendo deixado boas recordações de todos eles - vivem de uma ambivalência que poderia conduzir ao desastre, não estivéssemos perante alguém cada vez mais seguro de si, quer como compositora, quer especialmente enquanto intérprete. São espectáculos que não podem escapar às grandes encenações de pendor tecnológico, mas que também guardam um espaço generoso para a demonstração do virtuosismo da artista, seja no papel de pianista (os ecrãs projectam frequentemente grandes planos das suas mãos), de intérprete (e Alicia é, seguramente, uma das mais surpreendentes vozes femininas da actualidade), ou de compositora, e aí será fundamental deixar respirar as texturas, delicadas ou vibrantes, de um R&B de primeira água. Ou seja, haverá espaço para alguma pirotecnia, mas também para o intimismo possível de um grande espaço. E não será difícil adivinhar que será precisamente neste segundo registo que o concerto atingirá os seus melhores momentos. A base da digressão mundial em curso é, obviamente, o seu quinto disco, "Girl on Fire", de 2012, com o qual quebrou um silêncio de quase três anos. Um disco que reflecte o amadurecimento pessoal pós-maternidade, expresso, por exemplo, em "Brand New Me" ou em "New Day", mas pelo qual passa também uma poderosa corrente erotizante ("Fire We Make"), ou baladas do mais puro classicismo de partir o coração "Tears Always Win". É claro que haverá tempo para revisitar um carreira iniciada em 2001 (se descontarmos as aulas de piano, aos sete anos), com Songs In A Minor, e cristalizada em 14 prémios Grammy, mais de 30 milhões de discos vendidos. Uma viagem ao passado por terrenos nem sempre óbvios, e que incluem, por exemplo, "Fallin'", ou "Like You'll Never See Me Again", num registo de enorme contenção. E, claro, o imprescindível "New York State of Mind", com um J-Zay enlatado e projectado em ecrã gigante. Algures entre duas canções, Alicia talvez lhe peça que ligue a luz do telemóvel em nome de qualquer coisa (ou será causa?). O melhor é alinhar. As grandes divas, dizem, não gostam de ser contrariadas.

John Grant - Pale Green Ghosts ****

"Queen of Denmark", do disco homónimo de estreia (2010), estabeleceu um paradigma de cinismo na forma de canção dificilmente igualável. E, no entanto... No entanto, neste segundo registo, John Grant esforça-se por bater esse recorde pessoal. Não é comum encontrarmos - num disco, quanto mais numa mesma canção - tais doses de ironia, auto-ironia, crítica, sofrimento e redenção, como acontece em mais que um dos temas deste CD. As canções de Grant giram invariavelmente em torno da dor, seja a repressão da homossexualidade, o consumo descontrolado de álcool e droga, o diagnóstico de HIV, ou simplesmente os banais desencontros da vida. Banal seria, porém, reduzir esta poesia aos seus motivos próximos. É verdade que o "agente laranja" do tema "Vietnam" é assumidamente um ex-namorado, que de resto povoa todo o disco, mas será redutor ouvir "This pain / It is a glacier moving through you / And carving out deep valleys / And creating spectacular landscapes" colado a uma qualquer situação concreta. Este segundo disco confirma Grant como um extraordinário escritor de canções, com um apurado sentido lírico e dramático, que a voz encorpada serve na perfeição. "I Hate This Town", por exemplo, lembra "Going to a Town" (Rufus Wainwright), até pelas similitudes da construção sinfónica. Esse classicismo tem, neste disco, um tratamento inesperado, mercê da colaboração com Biggi Veira, dos electrónicos islandeses GusGus. O som pastoral dos Midlake do primeiro disco cede lugar à electrónica versátil, numa sonoridade a remeter amiúde para os anos 80. A frieza dos sintetizadores é, porém, temperada pela calidez das harmonias, marca de água de Grant. A par do cinismo, por questões de sobrevivência.

She & Him - Volume 3 ***

Um dia, ainda vamos descobrir que Zooey Deschanel e M. Ward, na versão She & Him, nunca existiram. Foi tudo feito em computador, daí a forma mecânica de nomear os discos: Vol.1 , Vol. 2, Vol. 3... A sério: já devem existir apps que juntam pedacinhos de canções e fazem outras canções, completamente novas, mas que já ouvimos em algum lado. Uma memória ao contrário. Zooey, na escrita, e M., no embrulho da coisa, são, além do mais, perfeccionistas. Por isso, é quase irresistível bater o pezinho ou deixar cair a cabeça sonhadora sobre o ombro ao ouvir estas evocações de uns anos 50 ou 60 que não vivemos. O único problema é que a fórmula, parasita por definição, tende a esgotar-se. É bonito, e depois?, já conhecemos. Há, porém, momentos de rara beleza ("Turn To White"), em que a fragilidade das vozes lembra que estamos perante simples humanos ("Baby" - uma versão), ou até de partir o coração ("Together"), que (os) salvam.

Ciclo Preparatório - As Viúvas Não Temem A Morte ****

Num assomo de modéstia e síntese, autodefinem-se como Grupo Coral Pop Especial Rural-Chique Delicodoce. Definição alternativa? Mais uma banda de queques urbanos fascinados por uma ruralidade que nem da TV conhecem e... também pelos anos 80. O resultado não é apenas agradável, talvez venha a ser um dos discos do ano, quiçá até mesmo de um Verão tão efémero como efémera é a pop divertida e certeira que praticam. Aos mais velhos – e a pose nostálgica assenta-lhes tão bem – isto soará a uma revisitação dos Heróis do Mar com a Lena d’Água ao microfone. Soa e soa bem, que a Lena entra numa das canções, título e voz. Outra Lena, esta Del Rey, é protagonista (calma, que é só em sonhos...) numa dos muitos exercícios de estilo que povoam o disco. As letras bem esgalhadas, cheias de coisas divertidas e filosóficas (!), encaixam perfeitamente em canções ágeis, apelativas (comerciais!) e muito bem interpretadas. Prometem.