Alicia Keys


Quando Alicia Keys canta sobre uma "Girl on Fire", fá-lo na terceira pessoa. E isso faz toda a diferença. Fossem Beyoncé ou Rihanna a cantar e a tal rapariga em chamas (ardente) estaria na primeira pessoa, como, aliás, no vídeo da segunda com Eminem ("Love the Way You Lie"). Com essas duas divas da neo-soul, estamos no território do explícito - elas mostram tudo, sejam os sentimentos, sejam as pernas. Em palco, são máquinas programadas para continuar esse jogo de hiper-exibição. Alicia Keys é diferente, muito diferente. A zona mais erógena do seu corpo nem sequer está à vista, já que é com as cordas vocais que mais nos seduz. Por isso, nada que enganar - espectáculo com pirotecnia carnal, só no regresso da Rhianna ou da Beyoncé. Não que Alicia não dance, só que a sua dança faz-se mais de insinuação que de transpiração. Os seus gestos limitam-se muitas vezes a leves esboços e, ao vivo, deixa o fitness para os dançarinos convidados. Os concertos de Alicia Keys - e Lisboa já assistiu a quatro, tendo deixado boas recordações de todos eles - vivem de uma ambivalência que poderia conduzir ao desastre, não estivéssemos perante alguém cada vez mais seguro de si, quer como compositora, quer especialmente enquanto intérprete. São espectáculos que não podem escapar às grandes encenações de pendor tecnológico, mas que também guardam um espaço generoso para a demonstração do virtuosismo da artista, seja no papel de pianista (os ecrãs projectam frequentemente grandes planos das suas mãos), de intérprete (e Alicia é, seguramente, uma das mais surpreendentes vozes femininas da actualidade), ou de compositora, e aí será fundamental deixar respirar as texturas, delicadas ou vibrantes, de um R&B de primeira água. Ou seja, haverá espaço para alguma pirotecnia, mas também para o intimismo possível de um grande espaço. E não será difícil adivinhar que será precisamente neste segundo registo que o concerto atingirá os seus melhores momentos. A base da digressão mundial em curso é, obviamente, o seu quinto disco, "Girl on Fire", de 2012, com o qual quebrou um silêncio de quase três anos. Um disco que reflecte o amadurecimento pessoal pós-maternidade, expresso, por exemplo, em "Brand New Me" ou em "New Day", mas pelo qual passa também uma poderosa corrente erotizante ("Fire We Make"), ou baladas do mais puro classicismo de partir o coração "Tears Always Win". É claro que haverá tempo para revisitar um carreira iniciada em 2001 (se descontarmos as aulas de piano, aos sete anos), com Songs In A Minor, e cristalizada em 14 prémios Grammy, mais de 30 milhões de discos vendidos. Uma viagem ao passado por terrenos nem sempre óbvios, e que incluem, por exemplo, "Fallin'", ou "Like You'll Never See Me Again", num registo de enorme contenção. E, claro, o imprescindível "New York State of Mind", com um J-Zay enlatado e projectado em ecrã gigante. Algures entre duas canções, Alicia talvez lhe peça que ligue a luz do telemóvel em nome de qualquer coisa (ou será causa?). O melhor é alinhar. As grandes divas, dizem, não gostam de ser contrariadas.

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