Jason Collett - Here’s To Being Here ****

Eis um daqueles discos destinados a sobrar para os saldos da próxima estação. Jason Collett é um nome que pouco ou nada dirá mesmo aos mais atentos consumidores de música, apesar de já andar nestas coisas há mais de uma década. E, no entanto, este é um disco que merece uma oportunidade.
Jason, sim, é mais um desses autores profundamente inspirados por uns certos anos 70. Os anos de ouro dos cantautores, um estilo muito próprio de cantar a vida embalada por pianos, guitarras e uns amigos nos coros. Para quem gosta de colocar as coisas em termos geográficos, diríamos que Jason fica assim um pouco a sul de Rufus Wainwright, mas a norte de Jack Johnson, recebe uns arzinhos de Dylan e diverte-se imenso com o que faz. Ouviu os Stones e decidiu copiar o coro de “Sympathy For The Devil” (em “Out Of Time”) e ouviu George Harrison e achou que ficaria bem aquela guitarra em “Sorry Lori”.
Bom, o parágrafo anterior era mesmo só para situar o objecto musical não identificado. Jason Collett é canadiano, de Toronto, passou por vários grupos (incluindo o relativamente conhecido Broken Social Scene) e este é o seu quarto esforço a solo. Há mais de uma década que só come comida orgânica, mas isso não se nota muito no disco, como não se nota o seu activo envolvimento político.
O disco foi gravado em apenas duas sessões, as canções são quase todas de bom recorte (digamos que não ficariam mal na maioria das estações de rádio…), com histórias de amor e outras banalidades, vestidas de cores quase sempre alegres, com a guitarra, nas suas mais variadas sonoridades, como adorno central.
Não estaremos perante um artista incontornável, mas este é um nome a reter. E a ouvir por quem gosta de coisas boas e está farto dos mesmos nomes.

Lisa Ekdahl

Gershwin só não dá voltas na tumba quando ouve Lisa Ekdahl cantar “But Not For Me” porque Gershwin já ouviu muita coisa e ele próprio inventou umas tantas no seu tempo. Mas a verdade é que aquele corpinho frágil de sueca loira com voz a condizer (a condizer com a fragilidade e não com o cabelo loiro…) é uma das mais improváveis vozes do jazz actual. E compará-la com Norah Jones ou Diana Krall só pode ser obra de surdo ou de… promotor de concertos.
Mas Lisa tem um mercado. Estamos, é preciso não esquecer, no tempo do lounge e outras modernices. Por isso, ouvir uma sueca de voz frágil a cantar Cole Porter e outros standards do jazz é tão comum como o fado na boca de um japonês (juro que há…).
Esclareçamos uma coisa: Lisa é uma estrela na sua terra natal. Estrela, sim, mas a cantar canções pop… em sueco. Foi estrela aos 23. Até que um dia se lembrou de interpretar umas coisas de jazz e bossa nova (lá está, o lounge…) e o mercado internacional, sempre tão generoso, adorou o exotismo da coisa.
Já vai em três discos de jazz, entre originais do marido (Salvadore Poe) e clássicos do género: When Did You Leave Heaven?, Back to Earth e Lisa Ekdahl Sings Salvadore Poe. E isso já lhe valeu três Grammy.
É claro que os puristas abominam – os mais maldosos dizem mesmo que desafina quando canta ao vivo… -, mas ela não se importa. A avaliar pelas vendas dos seus discos por todo o mundo, os espectáculos cá no burgo não devem ficar às moscas.

Diogo Freitas do Amaral - A Transição para a Democracia ****

A vitória moral de uma derrota política

Quem vier a este livro, atraído pelo isco mediático, procurar grandes revelações sobre Camarate talvez tenha uma grande desilusão. Há, é certo, a revelação de um telegrama diplomático, misteriosamente desaparecido, noticiando informações da Scotland Yard acerca do passado delinquente de Lee Rodrigues, um dos “personagens” deste caso. Lee Rodrigues viria a ser ouvido, mais tarde, sobre a queda do avião em que, na noite de 4 de Dezembro de 1980, morreram o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, o ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa e acompanhantes. Como, “mais tarde”, outras pessoas foram ouvidas e a tese de acidente foi dando lugar à possibilidade de atentado.
Freitas do Amaral, apesar da sua proximidade política e pessoal às vítimas e do facto de ser, na altura, uma das figuras centrais do Governo, logo com acesso privilegiado a informação, mais nada diz sobre o assunto. Quase três décadas depois, constata, como todos nós, que a morte de um primeiro-ministro não poderia ter sido investigada da forma aparentemente leviana como foi. De permeio, lança uma pequena polémica com o ex-procurador-geral da República Cunha Rodrigues acerca disso mesmo. Não será, pois, a partir deste livro que o dossier Camarate conhecerá novo fôlego.
Percebe-se, porém, a aposta feita nesse caso para promoção de um livro de memórias, que se lê muito agradavelmente, que balanceia agilmente os pequenos casos e incidentes com a reflexão mais distanciada acerca da política, mas que, enquanto testemunho, nada traz de novo ao período sobre o qual se debruça.
Este segundo volume da autobiografia política do fundador do CDS é, acima de tudo, a tentativa de transformar uma ampla derrota política (um partido que nunca conseguiu definir o seu espaço; um projecto mais ambicioso, a aliança com o PSD, que acabou na tragédia de Camarate) numa vitória das convicções, conforme o autor, de forma algo insistente, assinala logo no prefácio: “Ter razão antes de tempo não me deu votos suficientes: mas o tempo veio a dar-me razão. Portugal tem hoje o modelo que eu defendi desde 1974”.
Estamos, pois, perante um longo ajuste de contas com a História, com o autor, resguardando-se numa bem encenada modéstia, a regressar frequentemente, ao longo de 400 páginas, a essa ideia que expressa logo de início. A relutância com que diz aceitar os vários cargos partidários e governamentais é amplamente compensada por vitórias, reais ou morais, das suas ideias. Esta é, como o autor assinala, a sua “parte da verdade” e não um livro de História.
Não havendo relevações de monta, diga-se que Freitas consegue contar uma história aliciante e que, sem ironia, se lê praticamente como um romance. A escrita é limpa, sem rodriguinhos, entre o género jornalístico e a quase oralidade. Há uma enorme preocupação de contextualizar todos os acontecimentos, como se estivesse a contar os acontecimentos daquele tempo às criancinhas. Nesse aspecto, chega ao exagero, por exemplo, de, quando se refere o célebre episódio da Moca de Rio Maior (a ameaça feita num comício do CDS de atirar todos os comunistas ao mar, a toque de moca), dedicar um parágrafo a uma pormenorizada descrição do objecto.
Um dos aspectos que tornam muito agradável a leitura deste livro, para além do seccionamento em pequenos capítulos, é o recurso frequente aos diálogos. Percebe-se que alguns deles são ficcionados, ou seja, aqueles diálogos podem não ter sido exactamente assim, mas as ideias terão sido aquelas. De qualquer forma, ao fixar esses momentos em diálogos, e ao colocar longas frases na boca de terceiros, o autor está a assumir uma certa dose de risco.
É nesses diálogos que encontramos os melhores momentos do livro. Seja nos episódios hilariantes (o general Galvão de Melo a expor o seu plano para implantar em Portugal o modelo bipartidário da Áustria, extinguindo, fundindo e dividindo partidos…), seja nos momentos de maior tensão (Sá Carneiro, na tarde do dia em que morreu, planeando fundar um novo partido, caso o seu candidato presidencial, Soares Carneiro, perdesse as eleições).
Por paradoxal que pareça, apesar de se centrar num período muito agitado da nossa vida política, o autor parece fugir intencionalmente à polémica. Fica, presume-se, para o terceiro volume das memórias, relativo a um período em que Freitas do Amaral fez opções surpreendentes e deixou o seu campo político perplexo.